Últimos Sinos da Infância
As carruagens rodavam muito próximas, estranhas passavam...
Meu grande herói era Wild Bill Hicock. Sobretudo amava-o quando, de modo certeiro, ele utilizava seus dois revólveres sem os retirar dos coldres: despejando o sagrado chumbo da justiça e os bandidos caíam mortos. Interessavam-me aqueles corpos no chão. Neles imaginava caras diversas, segundo as exigências de minhas circunstâncias. Ultimamente, por exemplo, era Alípio, meu rival quem caía morto com maior assiduidade. E, de outra parte, havia muito dos traços de Dilma, a filha do Sr. Adriano, nas mocinhas que meu grande herói terminava beijando ou abraçando.
Meu pai no entanto, preferia ouvir óperas e operetas.
-- Guga – chamava – venha até aqui.
Punha-me ao seu lado, sentadinho, e ordenava:
-- Ouça, com atenção.
O disco 78 rodava no prato do gramofone Victor (eu espiava o cachorro imobilizado, um belo cachorro, irmão de rin-tin-tin) e após o último agudo ou o último grave, ele inquiria:
-- Que opereta é está?
-- “Madame Butterfly”.
-- E esta ária, como se chama?
-- Um bel di vidremo, pai.
-- Vedreno, Guga, um bel di vedreno. Não é vi, é vê. Vedreno. Repita.
-- Vedreno, pai, vedreno.
Ele ficava feliz porque seu filho menor mostrava-se dono de uma memória razoável. Demais, aquela era a sua ária preferida. Ao ouvi-la ele enternecia até as lágrimas, identificando-se momentaneamente com a tragédia da mocinha japonesa engravidada pelo garboso oficial da Marinha norte-americana. Por isso, ao preparar o gramofone, exigia silêncio na saleta onde se localizava sua ampla poltrona de couro marrom. Se a Tia,irmã de minha defunta mãe, donzela aos 39 anos, aparecia nas imediações, sempre a reclamar com as empregadas, ele advertia:
Agora vê se fecha essa tramela.
A tia invariavelmente replicava que o Brigadeiro reagiria se a soubesse tratada “como uma empregada”. O pai de novo investia, chamando-a de bruaca tagarela, definindo o Brigadeiro como “um merda posudo”. Por fim mandava que se calasse aos berros.
Durante as semanas que seguiam à aquele tipo de alteração, minha Tia vingava-se ao seu jeito: exibia sobre o peito murcho, a medalha que lhe ofertara o Brigadeiro, o irmão desaparecido depois de uma aposentadoria compulsória imposta pela Ditadura. Dele meu pai dizia que andava bêbado em qualquer cidadezinha do interior paulista, mas minha Tia sustentava, diante das empregadas e de mim, que um dia (-- Oh! – suspirava, Deus é grande, Deus é grande!) o Brigadeiro haveria de reaparecer, talvez como Ministro de Estado. Bastava, para isso, que se implantasse no Brasil o regime democrático. Na carta com que enviara a medalha para ela guardasse aquele tesouro, o Brigadeiro, de fato, sugerira essa possibilidade. Minha Tia, contudo, transformava-a em certeza, pura verdade. Quem vivesse, veria. Exibia a medalha sobre o peito murcho, meu pai dava sinal de arrependimento ante os gritos com que a fazia calar. Não obstante grosseiro nos gestos, tinha um bom coração. Certa vez, quando a vingança estava em curso, meu pai trouxe-lhe de presente uma echarpe vermelha. Entregou-a com recomendação expressa:
-- Ponha-a com jeito, pinte os beiços sem escândalo e pendure-se na janela, ao fim da tarde. Quem sabe, se assim, não lhe aparecerá um marido?
Minha Tia reagiu com um muxoxo. No entanto, alguns dias depois, seguiu o conselho, à risca, infelizmente sem alcançar conseqüência práticas. Morreu donzela, apesar dos apelos e das propostas mudas que lhe fazia o espanhol Sr. Pepe.
De tarde, por volta das cinco horas, quem a esperava era o vendedor de “massas” e ele, a bem verdade se diga, fazia esmero no lhe escolher os pães mais quentes, as melhores roscas e broas. Ganhava galhos de erva-cidreira em troca, e, de quando em quando, além das romãs eventuais, recebia velhos borzeguins que meu pai ia aposentando. Entendiam-se bem, a Tia e o vendedor de “massas”, seu Anísio. Surpreendi-os, uma tarde, conversando animadamente, ela rindo, ele com alguma emoção. De noite, mordido não sei porque curiosidade, perguntei à minha Tia:
-- A senhora vai casar com o masseiro?
Recebi, como resposta um delicado tapa na boca, como se houvesse dito um palavrão ou incorrido em pecado mortal. E vi, arrependido, que ela chorava sem exagero. Acariciei-a. Pedi-lhe desculpas pelo erro, de que tinha consciência, e ela beijou-me várias vezes, mostrando-se capaz de uma ternura que antes do episódio eu não suspeitava possível. Na manhã seguinte preparou, só para mim, alguns pés-de-moleque cobertos com côco ralado. Meu irmão protestou contra o privilégio, mas meu pai, que me gostava cercado daqueles carinhos, disse para que todos sorríssemos:
-- O melhor é para o xereta da Tia.
Aquele foi um dos meus dias mais felizes. Antes disso aí, meu pai perguntou-lhe por novas cartas do Brigadeiro. De noite o que havia semanas não acontecia, jogando “burro” e bebemos refrescos de tamarindo. Pouco antes de subirmos para dormir, meu pai convidou-a e a mim para ouvirmos Augusto Calheiro cantar “A pequenina cruz do teu rosário”.
2.
Às terças, quintas e sábados, eu comprava meio quilo de manteiga. O espanhol do armazém, o Sr. Pepe ria com os dentes amarelos a contar as cinco moedas de 1.000 reis que eu punha sobre o mármore do balcão. Era um mármore frio, com tênues riscos azulados.
-- E a Tia, como vai indo a sua Tia? – perguntava o Sr. Pepe com seu sotaque galego.
Eu sabia que ele a espiava, fazia-lhe propostas com olhares lascivos, sabia igualmente que minha Tia reparava nos seus dentes pocados, na camisa sempre suja, os tamancos com que ele batia nos paralelepípedos de nossa rua.
-- E a Tia, como vai indo ela? Leva-me um recado?
Nunca lhe dava resposta, ainda que insistisse, demorando-se no embrulhar a manteiga.
-- Está bem, está bem... Leva cigarros?
-- Não, hoje não.
Meu irmão fumava cigarros Selma, mas só nos primeiros dias de cada mês. Eram cigarros da moda, ponta de cortiça, um luxo. Usualmente ele consumia os Aromáticos, da fábrica A. Guimarães, cujos rolos espalhava pelos móveis da sala de jantar e de visita. Um fumo negro, pesado, forte – e um dia, ao experimentá-lo, para bancar o Homem diante de Dilma, suei frio e vomitei. Chorei, naquela noite, horas seguidas, em meu quarto, não mais em virtude das náuseas causadas pelo fumo, mas por ter cometido uma imprudência da maior gravidade: desprestigiaram-me diante de Dilma, ela rira do meu vômito. Decidi que de nada adiantaria enviar-lhe a carta que preparara, frase a frase, na qual eu a dizia tão bela quanto Frinéia. A carta, de antemão gorada, ficou guardada entre meus livros da escola; e minha Tia, dias depois ao descobrí-la, pode considerar que eu era, apesar de traquinas, um menino dotado de sentimentos elogiáveis, um tanto precoce talvez. Ela nada entendia de Frinéia, e quando me interrogou, eu fui suficiente cínico para responder sem titubeios:
-- É a deusa grega do saber.
Meu pai e meu irmão, por vias das dúvidas, foram consultados, ao jantar, e concordaram. Nada sabiam de Frinéia.
-- Essa Dilma – perguntou meu irmão – não é aquela garotinha da roça do Sr. Adriano?
Era, e eu bati a cabeça, afirmativamente.
Está ficando uma mocinha... – disse.
Compreendi o que ele queria insinuar. Contudo, não se falou mais no assunto. Até porque, naquela noite, havia programa radiofônico de Natércio Bastos, o cantor caolho que, segundo meu pai, “interpretava com muito sentimento, quase igual ao Orlando Silva”
3.
Era meu mundo e meu paraíso, aquela rua.
Tonho, filho do sapateiro Amadeu, incluía-se entre nossos ídolos. Sustentávamos que Romeu e Perácio, juntos, e Patesco, ainda de quebra, não valiam a classe, o arrojo e a resistência física descomunal do nosso Tonho. O velho Amadeu preparava-o cuidadosamente. Queria torná-lo um craque do futebol profissional. Tonho estava com meio caminho andado. Já pertencia ao quadro de aspirantes, dele os jornais começavam a falar. Não obstante sua fama, Tonho era amigo. Participava do nosso salão, no Beco da Agonia. Permitia, às escondidas do Pai, que ouvíssemos transmissões esportivas em seu rádio de galena. Foi ele quem nos ensinou a guardar jornais, revistas, cascos de cerveja, pedaços de chumbo, latinhas de “leite Moça”. Vendia tudo e distribuía, com nossa turma, o dinheiro apurado, retirando as parte. Foi ele, ainda, o magnífico Tonho, quem descobriu a existência de belchiores no Mercado Modelo, indicando o caminho para conseguirmos dinheiro com a venda de roupas velhas e sapatos usados. Então, sim, o dinheiro era grande, nosso mundo era maior, mais alegre. Assim rico, livre, eu almoçava depressa, convidava Nouca, o filho da lavadeira Fulô, e íamos para o “matinê do perfume” no Cinema Jandaia.
Foi numa tarde daquela, dia de cinema e de sonho, que vi, pela primeira vez, as carruagens estranhas, os sinos plangendo, carruagens negras e habitadas por vultos fantasmagóricos. E se iniciaram, então, os meus pesadelos. Já não me sonhava, como de hábito, ante o público de milhões de aficcionados, a traçar as jogadas que permitiam a Tonho desferir violentos chutes, pelotaços indefensáveis. Sequer me sonhava regendo uma grade orquestra ou trazendo até o Japão, seguro pelo gasganete, com auxílio do Brigadeiro, aquele maldito oficial norte-americano que engravidara a mocinha japonesa. Agora, com as carruagens próximas, os sinos tocando, havia sempre, nos meus sonhos aquele homem de pulmões podres. Era um homem magro, de olhos grandes e cheiros de terror, e tanto quanto me lembro ele fugia da carruagem, e havia neve, onde quer se fosse havia neve, e sobre a neve espalhava-se o sangue que lhe saía da boca, escorrendo pelos cantos. A carruagem fantasma de sinos bimbalhando, estava a perseguí-lo, mas ele resistia, queria viver, e fugia, na neve levantava-se e caía, sempre, e fugia – até que não pode mais.
Uma noite acordei gritando e meu pai ameaçou bater-me porque eu lhe falei da morte, mas logo apiedou-se de mim: eu chorava. Disse-me comovido:
-- Os meninos não morrem.
Continuei chorando e ele repetiu:
-- Guga, ouça, os meninos não morrem.
-- Só nos sonhos é que os meninos morrem – disse meu irmão, também despertado pelos meus gritos.
Minhas Tia, da porta, batia a cabeça. Dizia que sim, dizia que só nos sonhos é que os meninos os meninos morrem.
Convenci-me, aos poucos, de que estava livre, mas os outros não; os outros, os não meninos, morreriam na vida e nos sonho.
Dias depois, ainda próximas as carruagens, tive coragem para dizer à minha Tia:
-- Um dia virá a carruagem dos sinos e a senhora vai morrer, o Brigadeiro também vai morrer.
Ela olhou-me com raiva. Afirmou que não.
-- O Brigadeiro é forte – disse.
Contou:
-- Faz poucos anos, no alto Araguaia, ele teve tifo e impaludismo de uma só vez, as duas doenças juntas, e ficou bom, sozinho, sem médico e sem remédios. Bastou sua natureza.
Olhou-me fixamente e afirmou:
-- Ele é forte como um touro.
Eu me tranqüilizei e me veio à memória o que Neco, simples e verdadeiro, me havia dito à saída do cinema.
-- É tudo fita, é tudo mentira.
Eu repeti, cem vezes:
-- É tudo fita, é tudo mentira.
A repetição se não me impôs uma verdade, trouxe-me um sono sem sonhos ou pesadelos.
4.
O Brigadeiro, irmão de minha tia, eu o imaginava alto, espadaúdo, de grandes bigodes e olhar severo, como os do meu avô capitão-de-mar-e-guerra que morreu quando o navio sob seu comando explodiu no rio Amazonas.
Havia um retrato antigo do meu avô, em moldura ovalada, e meu pai o tinha com muito orgulho em seu gabinete.
-- Morreu – disse meu pai – quando eu ainda não completara os 16 anos. Desde então, fiquei sozinho e pobre. Trabalhei e estudei aqui mesmo, na Bahia, no começo eu vendia tamancos...
-- Como quem “Nada Quer”? – perguntei.
Meu pai riu. Ele gostava de minhas interrogações inesperadas. Achava-as próprias, oportunas, inteligentes, delas falava com meu irmão.
-- Não – explico – “Nada Quer” é um mascate, saí de porta em porta perguntando se lhe querem comprar algo. “Nada Quer”, pergunta, e daí vem o apelido. Eu, não. Tinha uma lojinha, de chinelos e tamancos, mas estudei...
Meu pai era o que, na época, se designava como “técnico em imposto de renda”. Sabia como preparar as declarações dos seus clientes. Deduzia daqui e dali, alterando fatores e depreciando o produto, o cliente pagava menos ao governo, meu pai ganhava mais. Uma produção sobremodo honrada. Fazia-se alegre, mas sabíamos, que a viuvez inesperada, a morte de meu avô, os filhos, tudo se reunira para matar seu grande sonho, como eu imaginava: a Marinha de alto mar, a grande aventura pelas terras estranhas, a continuar o Pai, mais longe que o Pai. Não me surpreenderia se um dia ele entrasse em casa com uma bela roupa de almirante e nos convidasse a todos para partir. Meses antes das carruagens, essas visões do impossível repetiam-se com freqüência, mas agora desaparecendo. Já não ocorriam senão uma vez ou outra.
Eu crescia.
5.
Olhávamos os dois, um dia, o retrato do avô, e eu disse para agradá-lo:
-- Quando crescer e for rico, vou até o rio Amazonas jogar flores para meu avô.
Meu pai olhou-me com gratidão e foi imenso o seu amor por mim. Secretamente, porém, eu tinha certeza de algo terrível. Eu sabia que, muitos anos antes, os sinos tangeram jacarés e cobras d’água ordenando-os a despedaçar o corpo do meu avô. Eu sabia que os sinos açularam as piranhas para alvejar-lhe os ossos. Por que, então, atirar flores num cemitério de águas?
Naquela época o único cemitério que eu conhecia era o da Quinta dos Lázaros. No último domingo de cada mês, levava flores para minha mãe, seus restos e sua memória. Enquanto orava sem muita convicção meu pai caminhava pensativo entre os túmulos, as campas. Estava habituado, não tinha medo. Meu irmão levava as rosas que ele próprio cultivava em nosso quintal. Fazia, com as roseiras, estranhas experiências, submetendo-as a cortes e enxertos, adubando-as com drogas misteriosas que trazia em latinhas cuidadosamente preservadas de minha curiosidade. Gostando de sua pertinácia e desejando estimulá-lo, meu pai perguntava-lhe à mesa:
-- E então, quando teremos as rosas azuis?
Meu irmão , entusiasmado, falava na possível transmissibilidade de caracteres adquiridos. Formou-se em agronomia, evidentemente. Produziu sete filhos, é feliz. Cuida, hoje de porcos e vacas do Estado, e continua contente, embora ainda não tenha obtido suas rosas azuis.
Eu recordo quando o invejei quando nossa casa foi enfeitada e vieram convidados para sua festa de formatura. Havia ponche e doces variados. Meu irmão brilhava. Ele tinha uma noiva, loura e esguia. Eu a odiava intensamente quando, com o apoio de minha Tia, ela me inspecionava as unhas e ouvidos.
-- Estão sujos, é feio... – dizia.
Meu pai, considerando aquilo muito útil, dava-lhe a tesourinha e ela cortava, rente, minhas unhas, quase a sangrar-me. Nos ouvidos, enfiava chumaços de algodão úmido, virava e revirava, limpando o conduto, sem muita delicadeza. Depois de tortura que me infligia, como a mostrar-se futura esposa modelo, dizia para todos:
-- Agora, sim, até parece um homenzinho.
O ódio, em todo caso, quase desaparecia quando ela me comprava algodão-doce e ria-se, compreensiva, porque eu me lambuzava a cara. Certa noite, porque apenas me houvesse cortado as unhas, esquecendo o algodão-doce, eu a vi, branca, os olhos fechados, as mãos caídas, na carruagem dos sinos, os pés sujos do sangue vomitado por aquele indivíduo magro. Era gente grande, podia morrer.
6.
Ela tinha uma irmã, mas ou menos da minha idade, e levava-a para os almoços de domingo. Era uma menina dentuça, de voz fanhosa, a melhor aluna de sua classe. Perseguia-me com sugestões imbecis, sobretudo queria que eu fosse auditório para o que ela sabia de francês:
-- Diga – insistia – diga pére, diga.
-- Pére – eu repetia, azucrinado.
-- Que é pére? – perguntava.
-- Não sei.
-- Pére quer dizer pai. Diga: pére quer dizer pai.
-- Pére quer dizer pai.
-- Ótimo, ótimo! Agora diga mére. Diga: mére.
-- Mére.
-- Mére quer dizer mãe. Diga.
-- Mére quer dizer mãe.
Um domingo, porque eu tinha outro programa (falávamos de oncle, de souer, de cousin, etc) resolvi escandalizá-la de modo muito contudente:
-- Bom – disse eu – agora vou cagar. Você quer cagar comigo?
Ela chorou, bateu os pés, apontou-me a todos como um malvado de boca suja, e meu pai, sem muito empenho, andou a procurar-me para nova e formal ameaça de ovo quente na língua. Eu estava escondido atrás do galinheiro, no fundo do quintal, e minha Tia, que não simpatizava com a dentuça, suspeitando-a de prováveis descarações comigo, fez que não me viu. De sorte que escapei pelo Beco da Agonia alcancei, lampeiro, a roça do Sr. Adriano – pai de Dilma, minha Frinéia – onde a turma brincava de índio.
Aquilo, sim, era uma maravilha. Pintávamos a cara com roxo-terra, enfeitávamos a cabeça com penas de galinha ou de conquém, e invadíamos o Éden. Quando alcançávamos o fundo da roça sob a proteção de compactos bananais Dilma tirava o vestido e exibia-se de calcinha, para autenticar a farsa. Não era necessário pintá-la com roxo-terra ou pôr-lhe penas de galinha e conquém. Porque ela era a rainha branca perdida numa selva estranha, de terríveis inimigos, e tudo consistia, na primeira etapa, em encontrá-la, prendê-la, amarrá-la numa árvore, até eu Tarzan (democraticamente sorteado com o auxílio da parlenda uni-poule-sur-um-mur) aparecesse para salvá-las dos canibais. Naquele brinquedo, tão agradável à nossa imaginação e aos nossos olhos, duas circunstâncias nos irritavam. É que Alípio, o mais velho e o mais experiente de nosso grupo, era sempre quem primeiro descobria Dilma. Abraçava-a fortemente e a trazia prisioneira até a árvore do sacrifício, apertando suas pernas já caneludas contra as alvas coxas de nossa heroína. E depois, na hora do uni-poule-sur-um-mur cantado por Dilma, era quase sempre Alípio quem surgia como Tarzan. Tudo muito estranho, coincidências demais. Eu, contudo, tirava minha forra quando nos apresentávamos a amarrá-la na árvore do sapotizeiro necessitado de seiva nova. Porque dispusesse de razoável quantidade de barbante – que guardava, precavidamente, após cada brincadeira – eu era um dos que amarravam, dos pés a cabeça. Cumpria gostosamente meu papel de carrasco-canibal, e arrepiava-me todo ao tocar, sem pressa nas dobras e nos botões róseos de seus seios rijos. Ela se arrepiava também e olhava para Alípio. Ele, de sua parte, me encarava com ódio, mas não podia fugir às regras do jogo. Seu papel era outro, seria o Tarzan salvador. Ele que se arranjasse... Aliás, creio ter sido o motivo porque, certa vez, num “salão” animado, eu no gol, encaixando bolas impossíveis, Alípio, covardemente, chutou com violência desnecessária o bucho encordoado e molhado, atingindo-me na fonte vital, que, naquele tempo, de modo pudico e impróprio, eu chamava de “pinta”. Alípio, felizmente não demorou muito em nossa rua. Os pais mudaram-se para península itapagipana e Dilma ficou sem dono, toda nossa, da turma inteira, e não se sentiu triste. Mas, o que é bom dura pouco, seu pai foi procurado por uns vizinhos ranzinzas, emprenhando-se pelos ouvidos. Assim, de raiva, nunca mais abriu a roça para a nossa turma, e Dilma, soubemos depois apanhou tanto a correias, que a mãe teve de providenciar folhas de bananas d’água para que ela pudesse convenientemente descansar as partes pudendas – e assim aliviada dormir sua inocência moral e seu fogoso despertar do sexo.
O incidente, pelo que me lembro, não terminou aí. Houve queixas variadas contra os “meninos pervertidos” e meu pai, um dos procurados pelo Sr. Adriano, não deu importância demasiada às denuncias. Minha Tia é que andou me espionando enquanto tomava banho. Queria verificar, pessoalmente, se eu era um dos meninos entregue a “maus costumes” enquanto nus.
Meses depois, não muitos, já esquecidos a carruagem e os sinos, meu pai me chamou no gabinete e perguntou:
-- Já tem pentelhos, você?
Tomei um susto e respondi:
-- Sim.
-- Pedra nos peitos, já tem?
-- Sim,pai.
-- Bom, aconselhe-se com seu irmão. Você ficará rapazote e merece que lhe dê uma mesada. A partir do próximo mês, dia 1, pode me lembrar. No mais procure seu irmão, fale com ele, como um amigo.
Eu exultei. Beijei-o com gratidão, pus no gramofone Um bel di vedremo e ele veio ouvi-la com lágrimas nos olhos. Naquele momento, tenho convicção disso, já não enternecia a tragédia da mocinha japonesa. Ele se reencontrava em mim.
Julho 1964.
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