O julgamento do anjo.

 

Creiam-me... — gritou o réu ao se levantar. O juiz martelava na mesa insistentemente pedindo ordem no tribunal, enquanto um burburinho soava do auditório.

— ...Eu sou um anjo!  — completou o réu ao estacar-se de pé.

— Silêncio! Ou evacuo o recinto. — Ordenou o meritíssimo juiz.

Data vênia, Excelência. — Levantou-se, também ao grito, o advogado de defesa com o dedo em riste e argumentou:

— É de fundamental relevância ouvi-lo, pois a tese da defesa está centrada na crença do acusado...

        — Protesto! — Gritou o promotor público. — O réu dará seu depoimento quando for ocupar a tribuna...

As vozes do público no auditório se abrandam quando o juiz interpelou incisivo:

— Protesto negado! Concedo ao réu dirigir-se à corte, — e completou: — quero ordem no tribunal! 

Os advogados se sentaram. O silêncio aos poucos se instalou no recinto. O réu permaneceu de pé.

O juiz, quebrando o silêncio, ao réu perguntou nome, endereço, a natureza do crime pelo qual estava sendo julgado e se era inocente ou culpado. O réu respondeu calmamente:

— Chamam-me Miguel Arcanjo. Eu mesmo não me nomeio por ser parte da essência divina e existo ab initio. Dizem-me anjo. Vivo onde vivo que é todo o cosmo do qual também sou parte. Imputam-me o crime de assassinato e dele sou culpado e inocente.

— Protesto! Excelência. — Esbravejou o promotor público de maneira teatral. — O réu está de chacota para com a corte.

— Protesto negado! — Disse o juiz ao promotor público e dirigindo-se ao réu perguntou:

— É culpado ou inocente, Sr. Miguel Arcanjo?

— Por libertá-lo e purgá-lo sou culpado, Excelência. Por ceifar sua fé na necessidade da vida, inocente.

— Explique-se melhor, Sr. Miguel Arcanjo. — Impôs o magistrado. O réu narrou,

— A humanidade, por estar engatinhando em sua existência, vagueia por misteriosa escuridão. Os claustros-mortos-vivos, que se denominam humanos, são tentados mais facilmente a abusos e más ações respaldados nas mais íntimas aspirações ao poder e ao dinheiro do que ao amor e à cooperação mútua...

Do auditório, um senhor gordo, alto, de modos rudes, o interrompeu no discurso e gritou:

— Claustro-morto-vivo é a puta que lhe pariu, maluco!

O público do auditório gargalhava. Até entre os sisudos membros do jure se notava risos.

— Silêncio! — Martelou novamente na mesa o juiz e ordenou — Continue, Sr. Miguel Arcanjo. Mas alinhe-se ao que interessa ao tribunal, ou seja, ao caso.

Batendo a cabeça afirmativamente, Miguel Arcanjo seguiu com o depoimento:         — Ao desespero estava entregue a vítima. Pensava em se matar...

Interrompendo-o, ironicamente, o juiz o questionou:

— Qual a relação que sua retórica de lato sentido tem a ver com o caso?

Sem dar importância à ironia implícita na pergunta do juiz, Miguel Arcanjo continuou com sua defesa.

— ... por se apartar da Sabedoria Divina, ele, o claustro-morto-vivo que se nomeava doutor Evilázio Montalvom, passou a desejar ter o que não lhe era destinado. Assim, o desencarnado ao qual Vossa Excelência se referiu, ansiou como anseia cada um dos claustros-mortos-vivos e se excedeu em paixão e em dívidas. E para tentar saneá-las, mais e mais dívidas se multiplicaram em acréscimo. A ponto de

 

ele não conseguir sequer a paz. E como a fome do usurário pelo lucro é cruel e crescente e sua alma é fria como o cofre de aço onde acumula suas ilusões. Os usurários o atordoaram com muito empenho na cobrança e lhe tiraram tudo. Até o espírito do infeliz foi dizimado. Desempregado, alcoólatra e desesperançado, batido e rebatido pela vida, ele se lembrou da catequese e orou por si, e, assim, a ele fui enviado. Encontramo-nos e, não por acaso, eu havia lhe trazido uma garrafa de bom uísque.

O promotor público, mais uma vez, interferiu zombeteiro:

— Um anjo que traz ao débil alcoólatra uma garrafa de uísque é passível de risos! Afinal, que tipo de anjo é você?

Miguel Arcanjo respondeu tranqüilamente ao promotor:

— Ao viciado o vício. Até que a vontade do viciado coadune com a vontade de Deus em libertá-lo. Porque lhes afirmo: só Deus liberta.

— Balela! — Retrucou o promotor público e volvendo-se para o juiz pediu:

— Meritíssimo, não vamos nos estender nessas bobagens teológicas. Permita-me apresentar o caso imediatamente...

— Peço ao digníssimo juiz, — interferiu o advogado da defesa, — que dê espaço amplo e irrestrito à explanação do acusado. — E dirigindo-se a bancada do jure ele solicitou: — Vamos ouvi-lo.

— Siga com sua história, Sr. Miguel Arcanjo. — Ordenou o juiz. Miguel Arcanjo retomou o discurso:

— Encontrei o doutor Evilázio Montalvom quebrantado física e espiritualmente. Estava jogado como um cão sarnento sob um viaduto. Disfarçadamente me aproximei e ofereci um gole do bom uísque. O pobre indigente aceitou. Bebemos juntos. E quando havia conquistado a necessária confiança perguntei-lhe a causa do seu infortúnio e ele me narrou os eventos que o levaram àquela mazela. Ele  me  disse  ter  sido  um  homem de títulos e posses. Pai de um

jovem e brilhante médico e casado com uma senhora de bom caráter e zelosa esposa. Porém, conhecera uma belíssima jovem, anos mais nova, e que ele por ela havia se apaixonado. Ela, fingindo amá-lo, o fez largar a esposa e filho para com ela se aventurar em um negócio aparentemente muito vantajoso. Cheio de sonhos, o claustro-morto-vivo hipotecou o que lhe sobrara do divórcio e, quando ele deu por si, a jovem mulher tinha fugido com todo o dinheiro arrecadado. Assim perdera tudo o que conquistara na vida com muito de suor e sacrifício. Confessou-me, então, querer se matar, pois lhe faltava coragem para suplicar o perdão da família...

O promotor público interferiu com veemência.

 — Você quer me convencer de que o doutor Evilázio Montalvom suicidou-se com trinta e cinco facadas... E devo frisar que a faca foi encontrada na mão réu, logo após o crime, ensangüentada. E a dita angelical pessoa estava prostrada sobre o cadáver encarnado pelo mesmo sangue dos pés à cabeça... Conte-me outra!

O promotor público, ainda com trejeitos teatrais, falava aos jurados com a clara intenção de incriminar o réu antecipadamente. O advogado de defesa se colocou entre o promotor público e o jure e contra-argumentou que o réu agiu em defesa de suas legítimas crenças e que era necessário deixá-lo concluir. Novamente o burburinho ecoou do auditório e de lá se ouvia gritos de assassino! assassino! e prendam-no! O juiz voltou a pedir ordem no tribunal e martelou a mesa repetidamente. Miguel Arcanjo se irritou e dirigindo-se ao público desabafou:

— Vocês se acreditam sabedores dos fatos e nem mesmo sabem que apenas pensam que existem. Acham-se senhores de si. Vocês! Azemo-las! São incapazes de enxergar luz. Veem apenas ilusões e creem nelas e se cegam frente à verdade. Mesmo assim, tolamente, dão certezas científicas ao nocivo veneno da falsa sabedoria e tão rapidamente as propagam como evolução e progresso que as espalham mais e mais a cada dia. E novas ilusões surgem e são consumidas. E nem bem aceitas, vocês as substituem por outras e o fazem tão rapidamente que nem mesmo as ilusões esquecidas, que eram verdades absolutas lhes trazem compreensão. Tolos! Tolos!

— O réu grita — Vocês falam de mudanças e nada em verdade mudou. Ainda é pesado o fardo da incompreensão, do fanatismo, das paixões desenfreadas, da usura, do egoísmo, da tirania, da inveja, da perversidade, do terror e de tantas outras ações causadoras das fatalidades e desgraças do mundo. Ao se cegarem as Verdades Divinas vocês fazem permanecer a fome, as guerras, as pestes e a escravização disfarçada por engodos que os tiranos chamam civilização. Vocês fazem tudo por lucros ilusórios e de falsa propriedade. Nada pertence a vocês... De a fé necessária que vocês deturpam, fazem lucro! Da dor e das doenças, fazem lucro! Da fome e da miséria, fazem lucro! Da guerra, fazem lucro. Até da morte vocês fazem lucro! E a cada lucro ilusório que pensam obter mais se afastam da Verdadeira Sabedoria. Porque, imbecis, daqui vocês nada levarão. Não levarão sequer uma molécula ou uma mera e vã aspiração. Pois saibam que aqui é o purgatório. Aqui é o reino do tinhoso e as vidas em seus corpos podres são suas jaulas! Seus medos, seus grilhões! Seus insanos desejos, a chibata que os martiriza! E apesar da contemporaneidade de seus corpos purulentos, vocês, claustros-mortos-vivos, enclausuram espíritos que neles habitam e vivem em temporalidades cósmicas díspares. Enquanto uns poucos se libertam dos jugos milenares, muitos e muitos ainda permanecerão animalescos e por tanto tempo quanto se cegarem a Verdade. E saibam que continuarão carregando no lombo a canga do tinhoso... Nada lhes pertence a não ser a pretensão ilusória do conhecimento...

Durante todo o decorrer do discurso de Miguel Arcanjo as pessoas do auditório vaiavam e gritavam: assassino, prendam-no etc. Do outro lado, o advogado de defesa e o promotor público discutiam. O juiz martelava na mesa gritando ordem! Ordem no tribunal! Em resumo, só uns poucos jurados se ligaram ao desarranjo verbal do acusado. Aos poucos, e já com o braço cansado de tanto martelar na mesa, o juiz conseguiu restabelecer a ordem necessária ao andamento do processo. Então, irritado, ele ordenou a Miguel Arcanjo:

— Conclua seu depoimento, Sr. Miguel Arcanjo!

—...Então, após ouvir a confissão do doutor Evilázio Montalvom, que se mostrou arrependido, eu propus soprar perdão nos ouvidos da mulher e do filho dele, e garanti que eles o aceitariam de volta. Porque, lampejos da Verdade Divina são de tempos em tempos dispersos por anjos encarnados. E tais lampejos de luz, ternura, bondade e compaixão flamejam nos corações dos claustros-mortos-vivos e alguns deles se descobrem espíritos enclausurados e assim podem, enfim, serem libertados. Porém, devido ao poder do tinhoso e da natureza dos próprios claustros-mortos-vivos, esse fervor de bondade dura breve período. Com o passar do tempo a Verdade irá sucumbir às novas e poderosas ilusões, levando os claustros-mortos-vivos retornarem a escuridão. Então, Excelência. O doutor Evilázio Montalvom me surpreendeu ao querer ouvir a Verdade Divina. E a Verdade ele se entregou de imediato a tal ponto que recusando minha oferta me declarou:

Por conhecer a Verdade, quando estiver diante do infortúnio alheio, não mais me afetarei pelo orgulho das conquistas. Ao invés, sentir-me-ei pequeno. Menor que a miséria avistada, por agora saber que foram meus excessos que a criaram. Por favor, anjo. Liberte-me. E...

 

                                                         ... eu o libertei.

 

 

SSA –BA - 1995

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