Rosa tem febre demais
Espero a madrugada e visto minha roupa de sonho. Depois, sem que minha mulher desperte, ganho as ruas de silêncio e caminho passos de quem foge, aproveitando manchas de escuridão, sombras que grandes árvores projetam.
Agora atinjo as avenidas centrais. Luzes ferem os meus olhos e passam os boêmios e as prostitutas. Alguns param e olham minha fantasia de sonho — as longas barbas brancas, o vermelho manto bordado de arminho, negras botas que confundem meus pés com o asfalto. Olham e seguem e caminham, e mais rápidos são os passos porque agora sou esperado e é hora de chegar.
Mais além, no largo, antes da ladeira, estão os motoristas. Dizem coisas pornográficas, contam episódios de sangue, mas eu caminho e passo e eles fazem silêncio quando me vêem. Alguns, os mais velhos, atiram moedas no asfalto e eu as recolho e seus olhos me acompanham enquanto, na outra esquina, encontro a ladeira e vou começar a descê-la. Então, voltam aos temas de antes e terei sido um sonho rápido ou um pesadelo.
Na ladeira eu paro e meus sonhos de olhos penetram todos os lares e levam luz para as águas do rio e do mar. Eu chamo os peixes mais belos e mando que façam leitos de conchas e algas e neles deitem todas as crianças. Desperto os pássaros e ordeno-lhes um teto de penas sobre a terra, sobre o rio e sobre o mar. Às ondas peço silêncio, às pedras mando parar, peço à lua que se imobilize e peço às estrelas mais piscar. De longe chegam os pescadores, com seus fifós, suas redes, suas canções, suas velas, os olhos de suas amadas, o imenso desejo de amar. Suplico que façam rodas e cantem cirandas em louvor de Iemanjá. Peço lágrimas ao orvalho...
— Vem, nós te esperávamos.
A pequenina e escura mão é quente e firme e nela eu me equilibro, passo a passo a ladeira desço.
Na praia eles dormem e agora, despertos, é a mim que esperam. Eu chego e pedem as bênçãos e fazem filas para minhas mãos beijar. Depois sentam-se e fazem roda e eu lhes aponto os grandes navios, pesados de mistério e silêncio.
— O mar é grande — eu digo — e não escolhe terras para banhar. É grande, amigo, igual ao céu só o mar.
São crianças, acreditam, e eu falo de minha intimidade com as coisas do céu e do mar. "Sou amigo de Deus, afirmo, e Ele em dia há de fazer o que eu mandar". De repente. eu pergunto:
— Que pedido vocês fariam para eu a Deus ordenar?
Eles silenciam e eu insisto:
— Querem rosas ou outras flores? Querem brinquedos, novos amores ou no céu caminhar?
Eles nada respondem, apenas me olham.
— Não gostariam — pergunto — de um imenso navio sobre o rio ou sobre o mar? Seria um navio de mil cores, feito de nuvens e de flores, feito de mirra, incenso e âmbar.
— Vem — diz-me o garoto — nós te esperávamos.
Agora a ladeira acaba e são as estreitas ruas que despontam. Liberto-me da pequenina mão e abraço o garoto.
— Hoje — falo — muito pouco pude trazer.
— Não importa — responde — não queremos teu dinheiro. Queremos tuas histórias, tuas cantigas de ninar. Rosa tem febre, não dorme, e ontem Neco fugiu.
— Rosa tem febre? — pergunto.
—Sim, Rosa tem febre demais.
Os passos são mais rápidos, Rosa tem febre demais. E à medida em que caminho todas as estrelas me seguem, todos os peixes e as lebres, as cobras e os pardais, é preciso chegar a tempo, Rosa tem febre demais. Eu a encontro e ela delira, os lábios estão roxos, os olhos parecem de sangue e eu mando a morte parar. Chamo os ventos e mando que a ergam, chamo o mar e mando que limpe aquele lugar, chamo os pássaros, chamo as flores e chamo os anjos a cantar. Os ventos a embalam, os pássaros tecem uma rede, uma rede de penas e luar -- e Rosa nela se deita, a vida toda refeita, sorrindo para a morte que morre a estertorar. E digo "Rosa, filha" e ela ouve, seus olhos estão limpos, são outros olhos de Rosa a amar a nova vida que eu pude com a força do sonho criar. Eu sorrio, e ela responde, o mar todo de gozo se esconde e os ventos alegres vão passear. A morte ali fica parada, morta e eu caminho...
— Rosa tem febre demais.
De novo sinto as mãos pequeninas, agora é perto, é hora de chegar. Vejo Rosa, está deitada e em torno os garotos, em silêncio, estão parados a olhar. A febre queima e eu peço, mas os ventos não me vêm ajudar. O mar continua quieto, os anjos para longe fugiram, fugiram os pássaros e as cobras, fugiram também os pardais. De Rosa a vida foge, eu imploro a Deus que venha depressa, venha a Rosa ajudar. Ninguém ouve, ninguém atende, os meninos me olham —têm medo — a febre de Rosa é demais. É noite e não conto histórias, não prometo navios de incenso e mirra, flores e âmbar. Carrego Rosa nos braços, a vida não deve parar. Corro e arfo, gosto de sangue na boca, subo a ladeira de pedras e os garotos atrás. Um carro logo aparece, no largo, outro lhe vem atrás. Rosa carrego e corremos sobre rodas, eu e Rosa, os garotos atrás. Agora a manhã vem chegando, no Hospital eu espero, a gente do dia passa e olha minha fantasia de sonho. Os meninos, em torno, me escutam e eu repito "Rosa tem febre demais". O doutor vem e eu me levanto:
— Doutor, e Rosa?
— Já não tem mais febre. Sim, ficará boa.
Há espanto nos seus olhos, ao ver minha roupa de sonho, meus olhos de sono e sol, e com os garotos eu saio, cantamos pelos caminhos e de repente eu me imagino, distante, longe demais — eu e Rosa caminhando sobre nuvens, os meninos sobre as estrelas, distantes a terra e o mar, as cobras e os pardais...
Agora é dia e eu volto, não há silêncio nas ruas da manhã que se faz. A mulher me espera, mas não briga. Arruma na mala minha roupa de sonho, traz-me um café e mostra o relógio. Avisa:
— Dorme, depois te acordarei e ao trabalho em tempo chegarás.
Estarei feliz quando acordar. E sorrirei de verdade porque poderei contar, algum dia, para as crianças que me esperam, nas vésperas dos natais, a história de Rosa — menina que um dia teve febre demais.
Fim
Ariovaldo Matos retirado da Coleção de Contos - "A ostra Azul".
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