A Construção da Morte - Ariovaldo Matos
A
Construção da Morte
1.
Científico,
os doutores, compõem-se graves. Enfarpelam-se com suas túnicas brancas, são de
linho as camisas que usam, e escuras, quase sempre as gravatas. Sobre nós
despejam, as carradas, um palavrório idiota; ameaçam-nos com choques elétricos
; com agulhas furam-nos os braços e as bundas; goela adentro, gritando
“engulam! engulam! engulam!”, enfiam-nos pílulas e poções; e de noite, ao
dormirmos, eles nos espiam como se fôssemos animais. Então eu me lembro da égua
que tínhamos na roça. De noite, ela na estrebaria, meu pai nos levava a vê-la. “Roxinha”,
chamava-a com ternura sem receio que nós o achássemos ridículo. Já morreram,
meu pai e “Roxinha”. Quando nos espionam, de noite, os médicos não demonstram
mínima ternura. Talvez eles temam o ridículo. Somos coisas e eles máquinas.
Fazem perguntas absurdas. Alguma vez, em minha infância e em minha
adolescência, eu bisbilhotava, com luxúria, minha irmã? Expliquei que nunca
tive irmã. E minha mãe, fui dizendo, morrera quando nascemos, eu e meu irmão
gêmeo, agora em S.Paulo, engenheiro. De
certo modo matamos nossa mãe, mas não tivemos culpa. Eclâmpsia. É uma
estupidez, coisa mesmo dos científicos, gastar palavra tão linda com doença tão
miserável.
Eu
disse:
—
... terei tudo preparado, Sr. Élvio, fotógrafos cinegrafistas; tudo preparado e
o senhor, de todo o modo, deve fazer o máximo esforço para cair com o rosto
voltado para cima, olhando o céu. A nuca é que deve bater contra o solo, apenas
a nuca, Sr. Élvio, a nuca.
Ele
ouviu sem reações inúteis. Eu insisti:
—
Sim, Sr. Elvio, veja se não me deforma esta rosto. O senhor estará morto quando
cair e nada interessará, eu sei disto. Mas a nós, Sr. Élvio, a nós que iremos
filmá-lo, fotografá-lo, descrevê-lo, a nós ele nos interessará muitíssimo.
Repito: precisamos do seu rosto intacto.
Era um rosto inexpressivo, comum, o nariz fino, finos, igualmente,
os lábios, a ida tivesse condições para
expressá-las facilmente. O certo é que lhe pedia morresse adequadamente,
respeitando todos os detalhes que havíamos estudado, e ele me respondia com
aquele silêncio de passiva aceitação. Cumpria, desse modo, honradamente, todos
os itens de nosso acordo. Certos detalhes, como o de preservar o rosto, me
tinha escapado e eu, por desencargo de consciência, perguntei:
— Estou pedindo demais, Sr. Élvio?
— Acho justo, acho
justo.
Esta frase curta — “eu acho justo” — ele a renovou, vezes
sem conta, desde o nosso terceiro encontro, quando, afinal, eu o persuadi a dar
sentido prático e nobilitante a sua morte.
O médico magrinho, de cílios longos e louros, riu muito,
quando eu lhe repeti esta frase: “dar um sentido prático a morte”. Exigiu que
lhe oferecesse melhores explicações e me ouviu, sempre, com aquele arzinho
galhofeiro. O imbecil mal suspeita que, no fundo, eu é que estou a deplorá-lo. Recordo-o,
agora, com a piedade devida aos pobres de espírito, aos incapazes de grandes
ações em favor da espécie humana, essa gentinha insignificante que se limita a
trabalhar, a comer e a reproduzir-se numa monotonia exasperante.
Meu primeiro encontro com o Sr. Élvio, há mais de mês e
meio, resultou de um gesto meu que os confrades mais apressados poderiam
definir como perfeitamente piegas. A rigor, se eu me jungisse a uma conduta
rigorosamente profissional, deveria me restringir à condição de testemunha,
permitindo-lhe cometer o suicídio. Aliás, um suicídio de mau gosto. O Sr.
Élvio, com efeito pretendia atirar-se do alto do Elevador Lacerda à Praça
Cairu, uns setenta metros lá embaixo. Ele abriu a janela da torre, a do lado
esquerdo, começou a galgá-la, desajeitado, e eu, então, adiantei-me a tempo de
segurá-lo.
— Não faça isto, Senhor... — disse-lhe.
Ele não se debateu. Viu-se seguro e se manteve quieto.
Nada tentou, mediante palavras ou gestos, para que eu o libertasse. Sobre
suicídios, experiência de 18 anos labutando com jornais me ensinou, entre
outras coisas, que há suicidas em potencial que se mostram excessivamente
dramáticos. Quando são impedidos, conduzem-se exacerbados, e gritam e
esperneiam, provocam escândalos desagradáveis. Outros preferem chorar à toa,
lamentam-se, xingam-se, prometem, aos berros, que nunca mais pensarão naquilo,
uma baboseira. O Sr. Évio, devo reconhecê-lo, saiu-se muito bem. Permitiu-se
delicadamente conduzido para área a que chegava um dos ascensores e não se fez
nervoso quando o cabineiro perguntou.
— Descem?
Fizeram a viagem sem diálogos. Na Cidade Baixa, ao
deixarem a cabine, eu disse ao ascensorista:
— Por favor, uma das janelas lá de cima está aberta.
— É um perigo — ele disse.
— Sim, é um perigo — eu concordei.
Caminhamos juntos em direção ao ponto de ônibus.O Sr. Elvio aceitou o cigarro que lhe
ofereci. Perguntei:
— É casado, o senhor?
— Sim.
— Filhos?
— Sim, três.
— Posso perguntar porque o senhor queria morrer daquele
jeito?
O Sr.Évio, pela primeira vez me encarando com uma certa
vergonha:
— Eu tenho câncer, senhor. Nos pulmões...
— E os tratamentos, não há possibilidades...
Ele me interrompeu:
— Os médicos me disseram que já não há tratamento, nada
que possa curar, nada. Eu pedi que me contassem a verdade, me disseram, porque
já não sou mais menino, e eles...
— Lamento muito, senhor.
— Élvio, me chamo Élvio.
Mantivemos-nos calados, em seguida. A revelação da doença
me constrangeu. Eu odeio o câncer. Se fosse cientista lutaria contra ele movido
pelo ódio. O ódio é capaz de operar prodígios. Eu penso que ainda não vencemos
a luta contra o câncer porque os cientistas não o odeiam com fervor necessário.
E, no entanto, é preciso odiá-lo intensamente. Eu,por mim,o odeio com todas as
minhas forças. Disse ao Sr. Élvio:
— Eu odeio o câncer.
O Sr. Élvio, segundo creio, não me ouviu. Espiava o
Elevador Lacerda, de alto a baixo, como a medir a distância.
— São 70 metros –
eu disse.
Ele prosseguiu calado. O relógio, embaixo, estava a pouco
de marcar meia noite. Além de alguns transeuntes apressados e dispostos
alcançar as últimas viagens das cabines, restavam somente, na Praça, os
motorista a dormitarem em seus táxis. Olhei o céu, além do telhado do Mercado
Modelo, e quando de novo me reencontrei estava a reparar no chão sujo de óleo,
de cascas de frutas, sobretudo melancias e abacaxis, algumas laranjas
apodreciam nas poças d’água. Eu adoro laranjas, das de umbigo, do Cabula, e
disse ao Sr. Élvio:
— Isto é uma sujeira.
O Sr. Élvio permaneceu calado. Ele não deveria considerar
uma sujeira muito digna do porco do Prefeito e dos indivíduos que haviam jogado
fora aquelas laranjas. O Sr. Élvio,era obvio, pensava no câncer e em sua morte.
Eu me condoí do Sr. Élvio. Desejei apontar os mastros dos saveiros, na pequena
enseada diante do Mercado Modelo, num esforço para animá-lo, mas recuei. Se
fosse outra a doença — uma torcicolo, um
lumbago, mesmo uma tuberculose pulmonar — eu chegaria além de mostrar-lhe
aqueles saveiros. Falaria de Guma, de Lívia, de Rosa Palmeirão e mostraria onde, segundo eu imaginava, deveria ter
existido, muitos anos antes,o bar “Lanterna dos Afogados”. Mas recuei, a tempo
eu recuei, e maldisse meus excessos de imaginação. Um sujeito que vai morrer, e
o Sr. Élvio ia mesmo morrer, não teria muito interesse em espiar cascas de
melancias e de abacaxis, em irritar-se com o apodrecimento de laranjas de
umbigo, coisas de comer, muito menos se interessaria pelos mastros dos
saveiros, pelos amores de Guna e de Lívia em seus caminhos do mar, nem se
alegraria com a mulher batuta que fora Rosa Palmeirão. Um sujeito que vai
morrer só pensa nisto: vai morrer. E bestamente estabelece suposições sobre
quando e como morreria. Esta foi a minha certeza e o silêncio do Sr. Élvio
contribuía para que a ela eu me curvasse. De sorte que voltei a olhar o
Elevador Lacerda, as pessoas que corriam para alcançar as cabines. Olhei-o
atentamente e imaginei o trajeto que o corpo do Sr. Élvio teria feito até o solo. Quem sabe, talvez nem
alcançasse propriamente a Praça Cairu, aquele chão sujo de óleo, cascas de
frutas, de laranjas a apodrecer. Fosse incapaz de um bom impulso e o Sr. Élvio
não coseguiria mais do que se estatelar na marquise da pastelaria, cujo grande
relógio marcava os cinco primeiros minutos da madrugada.
— Câncer... eu murmurei.
O Sr. Élvio continuou calado, os olhos presos numa
cadeira de engraxate, ou, talvez, nas marcas dos ramais de ônibus, ao longe, no
outro extremo da Praça, além da estátua do Visconde, ridícula e em bronze. Eu
pensei no bom que seria para todos nós se nossos pulmões fossem feitos de
bronze, imune ao câncer.
— Uma ideia estúpida — eu disse, aporrinhado comigo mesmo.
O Sr. Élvio, então, despertando, falou calmo.
— E eu juro que não merecia isto. Nada fiz para tamanho
castigo. Estão sendo injustos.
Esqueci que os pulmões deveriam ser feitos de bronze e me
convenci que o Sr.Élvio era religioso. Temia a Deus. Decidi provocá-lo:
— O Senhor há de ter pecado, Sr. Élvio.
— Com certeza que sim.
— Calou-se um momento, pensava. Depois disse:
— Deus bem sabe que meus pecados são os pecados de todos.
Por que, então, escolheram a mim?
Ele estava meio transtornado. Transtornam-se com
facilidade os que são pobres de espírito e o Sr. Élvio era, aparentemente, pobre de espírito.
— Não é justo —
disse, quase exaltado. Não acho que tenham sido justos. O senhor acha?
— Não sei, Sr.
Élvio.
A resposta seca, construí-a de propósito de modo a
induzi-lo a falar mais, sem as contenções a que se reduzia. O Sr. Élvio, no
entanto, voltou ao seu mutismo. Supus que, falando aos botões de seu jaquetão
escuro e surrado, o Sr. Élvio continuava as suas imprecações contra a estranha injustiça
perpetrada por pluralidades não definidas. “Eles”, “eles”, quem? Estive a ponto
de inquiri-lo duramente: “eles quem, Sr. Élvio?”, mas me contive. Para a gente
limar o osso de um entrevistado é preciso muita calma, muita malícia, muito
conhecimento de quem pretendemos dissecar. Vai-se apalpando aqui e ali, lá e
acolá, sem precipitações. Era a minha tática com o Sr. Élvio. E aquilo me
divertia, enquanto não me surgisse o
ônibus. Pensei em reiniciar o diálogo com uma pergunta mais ou menos assim: “sim,
Sr. Élvio,o senhor me dizia ter sido injustiçado. A partir de que critérios o
senhor chegou a tal conclusão?”. Elaborei, mentalmente, a indagação mas não
cheguei a expressá-la. Porque o Sr. Élvio, de repente, e não imagino porque, me
perguntou se eu era médico. Depois, se eu era professor. Logo em seguida quis
saber se eu não era, por acaso, funcionário da Secretaria da Fazenda.
Abandonando as negativas secas eu lhe disse:
— Sou jornalista, Sr.Évio.
— O senhor escreve? — ele disse, como se tivesse descoberto a
pólvora. Se eu tivesse morrido o senhor teria escrito uma reportagem sobre a
minha morte, meu suicídio?
A presunção do Sr. Élvio me aborreceu e fui impiedoso:
— Serei franco o senhor, Sr. Élvio. A menos que o senhor
seja alguém importante, e o senhor não me parece ser alguém importante, eu
escreveria apenas algumas linhas. Fotógrafo bateria umas chapas do senhor,
devidamente morto, eu poria, embaixo, um textozinho. Só. O senhor não chegou a
escrever alguma carta, Sr. Elvio?
Ele não se abespinhou comigo. Aceitou minha ponderação e
deu-me a resposta que eu esperava:
— Não, não escrevi nada. Na verdade, tenho dificuldade de
escrever. Falta de prática. Eu nunca...
— Pois é, Sr. Évio. Se o senhor tivesse redigido uma
declaração qualquer, qualquer tolice melosa , então a notícia sairia um pouco
maior. Eu selecionaria umas quantas frase, bobagens. Os leitores, de qualquer
modo, gostam de saber o que é que um sujeito pensa antes de morrer. Mas, nem a
carta o senhor fez! O senhor percebe?
É possível que eu tenha sido franco demais. Agastado ou
não, o que sei é que o Sr. Élvio não me deu resposta. E de novo emudecemos.
Voltei a idiotice dos mastros de saveiros ancorados, as cascas de frutas no
chão, aquelas laranjas de umbigo que apodreciam, o bronze da estátua, mas me
recusei a fantasia de pulmões metálicos. Só os abissalmente ignorantes perdem
tempo com o impossível. Ou os que marcham para a demência. Não sou nem uma
coisa nem outra.
No entanto, e em virtude de tudo quanto fiz, os
idiotazinhos de batas brancas juram que estou mentalmente comprometido. Daí
porque me atormentam com suas injeções, suas pílulas, os choques elétricos com
que me adormeceram a vontade nos primeiros dias. Agora já me tratam melhor.
Dizem-me que caminho rapidamente para ampla recuperação. São uns farsantes. O
que desejam é uma confissão. “Ele morreu?”
— esses merdóides me perguntaram. Eu respondi: “Quem?”. Eles insistem:
“o tal sujeito”. E digo: “Que sujeito”. Eles disfarçam, metem as mãos pelos
pés, deixam o dito pelo não dito, asseguram “amanhã veremos”, e somem. Dão
lugar aos enfermeiros. E todos fazem de conta que não sabem do Sr. Élvio. Eu,
por via das dúvidas, me encolho. Eles que se virem. Descubram, se quiserem
descobrir. Não lhes darei nenhuma pista, a mínima chance. Bico fechado, bico
ferreamente fechado.
Quando ocupamos lugar no ônibus quase vazio — e junto nos
sentamos — eu ofereci outro cigarro ao Sr. Élvio. Ele morava distante, na
Ribeira, e eu em Roma, no meio do caminho. Pouco antes de aperta-lhe a mão,
despedindo-me, e querendo ser gentil, eu lhe disse.
— Se o senhor insistir em matar-se, Sr. Élvio, procure-me
que eu escreverei sua última carta.
— No jornal — eu
disse — do meio dia à meia noite.
— Que jornal? Como
se chama o senhor?
Disse-lhe tudo e saltei.
Caminhando, sem pressa, estabeleci, rapidamente, duas
hipóteses sobre o que iria acontecer ao Sr. Élvio. Acolhendo a premissa de que
era um homem de bem informado sobre os mistérios da península, imaginei que o
Sr. Élvio não alcançaria a Ribeira. Haveria de saltar na Madragoa, caminharia
pela Avenida Beira Mar, até o poço. Existe, ali, um ótimo local para cidadãos
que desejam morrer sem sofrimentos prolongados. No mar do poço há uma área de
lamas movediças, o perau. Elas agarram as vítimas pelas pernas e puxam sempre,
até matar. È uma lama preta, viscosa, e o melhor é morrer no mar. Indivíduos
que tiveram estiveram entre a vida e a morte, por afogamento, podem
testemunhá-lo. Antes da morte, quando a vida quase já não existe, sobrevêm
visões paradisíacas. O quase morto vai-se desamarrando da vida em meio a um
certo prazer que ninguém conseguiu definir. Ocorre um relaxamento, algo
semelhante aquele instante é em que abandonamos ao sono. Foi o que relatou, há
algum tempo, determinado cidadão entrevistado no Pronto Socorro. Quase nas
últimas, foi salvo no Porto da Barra. E um fuzileiro naval, que conheci ainda
jovem, quando praticava basquete, contou-me mais ou menos igual a sua
experiência de quase-afogado.
Quando parei na porta de casa, essa hipótese — a da morte
do Sr. Élvio no perau — logo se me afigurou difícil. O jeito que o Sr. Élvio se
despediu indicava que eu lhe havia imposto a obrigação de escrever cartas
finais. Surgiu então, naturalmente, a segunda hipótese: no dia seguinte, tão
certo quanto dois e dois são quatro, o Sr. Élvio iria procurar-me no jornal
para que eu redigisse suas cartinhas de despedida. Logo depois, com as cartas
no bolso do jaquetão escuro, encaminhar-se-ia para o Elevador Lacerda disposto
a grande salto. Era o mais provável. Compadeci-me do Sr. Élvio e resolvi
prestar-lhe outro favor: iria falar-lhe, da forma mais persuasiva possível, do
perau da Avenida Beira Mar. Pouco antes, evidentemente, eu ofereceria ao Sr.
Élvio um generoso jantar de despedida, de modo a ouvi-lo sem os prejuízos das
reservas mentais dos que hesitam. No banheiro, quando já terminava de fazer a
barba e me preparava para a ducha, reparando-me cada vez mais gordo e cabeludo,
uma idéia me explodiu na cabeça. Pensei que seria um bom negócio, para o Sr.
Élvio e para todos se ele decidisse morrer com um mínimo de preparação. E numa
fração de segundos me escutei a murmurar:
— Se o sujeito vai
morrer, se é impossível salvá-lo, por que não prepará-lo a partir dos
interesses daqueles que continuarão vivendo? Por que não dar à morte um sentido
prático?
Gostaria que aquele médico idiota, que me sorriu na cara
quando falei da necessidade de o homem não ser egoísta diante de sua morte, se
tempo ele tem para prepará-lo, se a sabe fatal em determinado período de vida,
gostaria que aquele médico idiota lesse esse relato. E sobretudo gostaria de
vê-lo a descobrir-se acovardado, preconceituoso, insignificante.
Eu me fiz aquela pergunta e nela insisti, para
convencer-me da legitimidade de minhas intenções:
— Sim, por que não?
Busquei, com esforço, respostas negativas para minha
indagação. Ocorreu-me uma ponderação de origem católica: não cabe ao ser humano
o direito de determinar o momento da morte de quem quer que seja. Este é um
privilégio de Deus. E dele faz uso quando e como lhe apraz. Bom, eu sou apenas
jornalista, um sujeito que aprendo uma coisa ali, outra acolá, assim, em boa
parte por injunções profissionais, de tudo sabe um pouco, ou pensa sabê-lo.
Tais as limitações e minhas ajuizando-as , com todo o rigor, eu me senti capaz
de rejeitar a ponderação católica a respeito de privilégios divinos sobre a
vida e a morte. Tanto quanto há notícia, não são poucos os pensadores católicos
contemporâneos que igualmente os repelem, porque lhes conhecem a história. Não
é este o caso do Padre Teilhard de Chardin? Vamos deixar de lado este
relambório. A verdade é que a argumentação católica não me convenceu. Bom como
é, eu me disse. Deus Nosso Senhor não iria, só de maldade, entupir de rumores
malignos os pulmões de um homem simples, pai de três filhos, como o Sr. Élvio.
Para quê? Só de ruindade? Mesmo meu sogro, que morreu também de câncer, o dele
começando nos rins, mesmo o finado do Sr. Edmundo, que fora o exemplo mais
gritante do homem mofino, não era de ter merecido aquele sofrimento todo. Pagar
os pecados? Uma besteira. Não conto nos dedos os tarados, os sem caráter, os
ruins que estão ai vivíssimos, lampeiros, e morrem de morte natural. O
argumento é tão idiota que só produz, como todos estão a perceber, contraditas
igualmente idiotas. Há uma frase latina que diz isto muito bem, mas esqueci
agora e não sou de coçar a memória só para bancar o lido. O essencial é que o
argumento católico não me convenceu. Cheguei mesmo a me recordar que um autor
muito citado defende tese segundo qual o primeiro grande suicida da História
foi, precisamente, o Sr. Jesus de Nazaré. Lembrei-me disso e criei, assim, para
apoquentar-me, um outro problema. Eu o formulei assim, quando mordia o último
pedaço de bife de minha janta fria:
— Mas os católicos asseguram que Jesus morreu pela
Humanidade inteira, todos nós. E o Sr. Élvio... Por quem morreria o Sr. Élvio?
Quem lucraria com suas morte?
Pensei com muita consciência, o problema novo e admiti
que havia certamente, uma grande diferença entre Jesus de Nazaré e o pobre Sr.
Élvio, bedel de um colégio oficial , filho da mulher necessariamente
desvirginada. Eu estava no meio desses pensamentos quando o isqueiro caiu e
minha mulher, do quarto, perguntou:
— É você, bem?
— Sim— eu disse.
— Vem deitar-se?
— É num minuto, um minuto.
A interrupção me conduziu a uma verdade simples: O Sr.
Élvio, no final das contas, não tinha nenhuma obrigação de ser Jesus Cristo,
tanto mais porque o câncer, que lhe invadira os pulmões, não lhe tinha pedido
permissão. Inexistisse o câncer e o Sr. Élvio continuaria a ser o simplório.
Élvio, bedel de colégio oficial, recebendo salário mínimo, todo entregue a sua
mulherzinha parideira e aos seus três filhos peraltas. O absurdo, verifiquei,
tinha sido o estacionamento de uma comparação impossível. Eu me disse:
— Meu problema é o Sr. Élvio e só é Sr. Élvio.
Eu devia estar muito excitado, porque minha mulher, do
quarto, ouviu os resmungos, perguntou:
— O que, bem?
— Nada — eu disse —
Nada. Estava construindo, em termos definitivos, o propósito de preparar, para
o Sr. Élvio, uma morte altamente produtiva. Não uma morte tola,brutal, egoísta,
a morte pela morte, só para escapar ao sofrimento e ao desespero. Dar-lhe-ia
uma morte preparada com toda consequência possível, em benefício dos filhos e
esposa do Sr. Élvio, em benefício ainda, dos que padecem de câncer e não têm
adequadas condições de assistência médica; e, por fim, em benefício dos
leitores do jornal que iriam ter assunto para muitos dias de ansiedade e
expectativa a conhecer os últimos e as últimas horas de um cidadão que preserva
toda sua coragem e toda a sua dignidade.
— É uma boa pedida — eu falei novamente.
— O que, bem? — minha mulher perguntou do quarto.
— Nada, merda! Vá dormir! — eu gritei, chateado.
Ouvi, da sala, seu amuo e imaginei seu gesto, virando-se
na cama.
Minha mulher é de uma ignorância completa em tudo o que
não seja o habitual. O pai, fiscal de renda, fora em vida, um imbecil fichado.
A mãe é devota de Santa Anastácia Ephigênia, algo assim, uma santa
trivialíssima e nos empurrou uma imagem da dita lá no apartamento, que, aliás,
eu aqui, distante, deve estar à matroca. O velho morreu de câncer nos rins,
meses e meses morrendo, coisa terrível e eu suportei uma despesa infernal. A
burra da minha sogra, enquanto o velho Edmundo apodrecia por dentro, só fazia
rezar, rezar, lamentando-se como se ela é que tivesse campando. Foram meses
seguidos nessa agonia. Minha mulher ainda está de luto. O preto, fechado, mas
não usa em casa, mas quando sai, mesmo para compras no supermercado, empretece-se
toda, dos sapatos aos brincos, e muda a cara, não ri. Mela-se de batom e rouge,
torna-se rubro-negra. Em casa, sem o preto, agarra-se ao radiofone e, movendo
os lábios, fica a repetir Orlando Silva que canta Rosa. É um outro imbecil
chapado. Minha mulher acha-o um gênio e me aconselha: “faça o que ele manda, é
para sua melhora”. São todos uns néscios. “Me cago no leche de todos”. No justo
momento em que deitei a cabeça no travesseiro dei-me conta de uma estupidez minha;
não havia solicitado do Sr. Élvio o seu endereço. Disse:
— Fiz uma besteira.
— O que, bem? Minha mulher perguntou, virando-se.
— Nada — eu disse — é coisa do jornal, durma.
Entre o fim da vigília e o começo da madorna, o diretor
do jornal, com seus trejeitos manuais e suas frases guinchadas, apareceu-me
para multiplicar sugestões idiotas sobre a morte do Sr. Élvio. Escutei-o a
perguntar-me com seu fraseado metálico:
— Bom prato, bom prato, mas será que não conseguiríamos
um bom patrocínio comercial?
Cuspi forte, sem direção, e a saliva grossa chocando-se
conta a parede pintada a cal amarelada desenhou um caranguejo de crescentes
tentáculos, uma santola bojuda. Me lembrei de Portugal, a pensãozinha lisboeta,
a jovem rapariga muito sentimental e muito doativa que dava lacinhos nos
pentelhos, com fitinhas com várias cores. Consegui desatar três lacinhos, azul,
vermelho e branco, e dormi como um animal, um duro e longo sono.
2.
Meu propósito, na manhã seguinte, tinha adquirido as
dimensões de uma idéia-força. Eu estava alegre, empolgado, e achei muito lindo,
muito bem comportados, os meus filhos. Dei bom-dia à minha sogra e elogiei o
“paulista” que minha mulher tinha comprado no açougue. Sugeri à cozinheira que
fizesse lombo com molho de ferrugem e o
enchesse com farofa e linguiça. Meu filho mais velho aprendia francês e ligou o
radiofone. Charles Aznavour dizia-lhe, e a mim também, que é preciso saber
muitas coisas, inclusive deixar a mesa, e eu me disse que, de fato, é uma
ciência saber deixar a mesa onde se bebe e se pensa. Quando comecei a fumar o
segundo cigarro, debruçado na janela, vendo o mar, Aznavour cantava “Et
Pourtant”... e minha euforia começou a deixar-me. De novo lamentei, vendo o
mar, não ter tido a precaução de anotar o endereço do Sr.Élvio, ou, ao menos
isto, saber em que colégio oficial ele trabalha de bedel. Uma estupidez, a
minha. Com o Sr. Élvio tinham permanecido todas as condições de iniciativa e me
senti inseguro. O mar, defronte, aumentava minha inquietação. Eu pensei
seriamente na hipótese do perau.
Intermezzo, digo-lhes: Morar em Roma é uma beleza. A
gente bebe café matinal e com dois passos ganha a praia. Pode-se caminhar de
pijama até o forte de Mont’Serrat. De madrugada, quando volto do trabalho, se o
mês é novembro ou dezembro, tempo de muito calor, o santo remédio para minha
inquietação, minhas angustias, indefinidas, é entrar mar adentro, nu em pelo, e
limpo com água e com a luz da lua. Compraz-me, por exemplo, o boiar longos
minutos, peito para cima, o pênis apontado para a lua gorda. Esforço-me por
enrijecê-lo e, se consigo, eu digo à lua com palavras que se perdem na minha
boca: “vou lhe engravidar, lua, vou lhe fazer bobó. Engravido-a e faço-a parir
estrelas, luazinhas de muitas cores, trens de veludo verde. Depois do parto da
lua, limpo e tranquilo, volto para casa sem o menor ruído, e durmo feliz,
libertado. Ninguém me viu ou ouviu. Mas, de manhã, todos estão de olhos
abertos, vigilantes, é impossível andar nu e eu sou um sujeito gordo e
cabeludo. De pijama, descalço, a areia com sua cor, dou meus passeios. De
ordinário não quero ver ninguém. E por maior que seja a algazarra em torno,
nada escuto.
Eu me comportei diferente, aquela manhã. Queria ver e
escutar.
Na ponta da praia, acima, fica o Forte. Sobre as pedras
pisadas fazem alguns pescadores, malancolia, indolência, todos os dias.
Perguntei-lhe sobre a morte do Sr. Élvio, ontem, no perau da avenida Beira Mar
mas me disseram que não, morte alguma tinha ocorrido, notícias qualquer sobre a
morte havia chegado. O mais magro, que me vende, de quando em quando, boas
guaricemas e guaraiúbas, m disse que nesses últimos meses no perau ninguém
morrera, e me ensinou:
— Mas se foi de madrugada, e hoje é manhã ainda, tempo
não há para o cadáver aparecer.
Os outros concordam e eu me convenci do que antes
suspeitava: o perau sabe trabalhar seus mortos. Antes de devolvê-lo ao mar,
deseja-os cheio da sua lama preta, podre, viscosa, adivinhando-o nos seus
contornos sob as águas que estavam verdes, um verde escuro.
Antes, no caminho, de Roma à Madragoa, o ônibus elétrico
quase vazio, eu me disse que o Sr.Élvio não me parecia um homem com três metros
de altura e só os homens de três metros de altura são capazes de,
voluntariamente, construir uma morte como a do perau. Quase voltei para casa,
convicto de que o Sr. Élvio me procurasse no jornal, de meio dia a meia noite,
para que lhes escrevesse as últimas cartas. Em todo caso, como estava indo, o ônibus
a alcançar o Largo do Papagaio, fui, nada perderia se espiasse o perau, e
esperei hora a pouco a olhar as águas verdes, sem medo de aparecer de repente,
boiando, o corpo do Sr. Élvio, um pobre homem. Induzido pelo hábito de indagar,
virtude profissional, eu me dirigi a alguns pescadores. Debaixo de um
tamarindeiro, melancolia, filme em câmera lenta, banzo, abrigavam-se nas
sombras. Perguntei-lhes sobre o Sr. Élvio e me disseram que não, na noite
passada, noite e madrugada, ninguém se aproximara do perau, sabiam-no bem isso
estavam pescando camarão, à rede, sim, com certeza sabiam, ninguém. Tornei a
indagar:
— O perau devolve cadáver?
— Depende moço. Às vezes os mortos ficam lá algumas
horas: outras vezes ficam dias e dias, inchando, e parecem gordos, enormes,
comido de peixes. E também há os
que não voltam nunca mais.
— Horrível — eu disse, muito teatro.
— Por que tanta pergunta, moço? — Um rapazote quis saber.
Inventei a história de um bêbado que, de madrugada, eu
tinha encontrado na Madragoa e julgava...
— Ninguém veio — disse o velho que esfregava o dedo dos
pés com areia úmida e eu tive vontade de pergunta-lhe se conhecia Santiago*,
pescador de Cuba, mas não perguntei temendo que o velho me julgasse maluco.
No ônibus, disposto a ir diretamente para o jornal, não
saltar em casa, deixar para a noite o lombo com molho de ferrugem, pensei na
coisa questionável que é a gente ter notícia de pescador com câncer a roer-lhe
os pulmões. Ponderei que aquela imunidade seria benefício do salitre. Sempre
respirando ar salgado, os pulmões do pescador se vão, endurecendo, e câncer que
é caranguejo preto, santola, não morde ali. Pois se morder, morre envenenado
pelo salitre. Recordei meu sogro, o Sr. Edmundo, e ao vê-lo morrendo em minha
memória, achei que eu estava a pensar uma besteira, porque meu sogro, afinal,
sempre vivera à beira mar e, no entanto... Mas na verdade o câncer dele
aparecera nos rins e de lá se irradiara e eu não pude imaginar como o salitre
pode proteger os rins de alguém. Desejei perguntar ao parceiro do banco do ônibus
o que ele pensava daquelas cogitações sobre o salitre, mas o sujeito absorto,
olhando a estação ferroviária da Calçada, depois o edifício da Petrobrás, mais
além a enseada de Água de Meninos, os tanques de gasolina e querosene, todos de
alumínio ou duralumínio, mas não poderiam impedir uma explosão, aquilo daria
uma boa reportagem, porque os tanques iriam mesmo explodir, tudo termina
explodindo, e com os tanques explodiriam logotipos ovais e losangulares,
aquelas casas de Santo Antônio Além do Carmo seriam as primeiras a despencar
encosta abaixo, grande reportagem, mas vi logo que o jornal não imprimiria uma
história daquelas porque recebia polpudas verbas publicitárias das empresas de
petróleo proprietárias dos logotipos ovalóides e losangulares e proprietárias
dos tanques e proprietárias dos jornais e de nós todos, uma esculhambação, e me
lembrei de Harvey O’Connor e perguntei ao parceiro, eu já estava suando,
aporrinhado:
— O senhor já leu “O Petróleo em crise”?
— Como?
— “Petróleo em Crise”, de “O’Connor, já leu?
Ele disse que não, não tinha lido, a falar a verdade nem
sabia da existência de Harvey O’Connor e eu considerei absurda sua ignorância,
mas não o disse, por tática pedagógica, e disse, com gestos e voz conselheiras,
que todos os brasileiros deveriam ler O’Connor porque O’Connor, usando
documentação inquestionável, contava muito direitinho as sacanagens dos truques
internacionais contra o Brasil, o Irã, a Venezuela, e o meu parceiro, um outro
Sr. Évio, mas sem câncer, nem câncer tinha aquele parceiro, sequer sabia que a
Venezuela, com enormes jazidas de petróleo, continuava importando tomates e
alfaces dos Estados Unidos, então era preciso ler O’Connor porque O’Connor não
tinha papas na língua e não achava que o que era bom para a Standart Oil era
bom para o povo norte americano. Eu disse ao parceiro:
— Sujeitos como O’Connor, Wright, Huberman, o velho
Veblen, Sweezy, Fred Cook, sujeitos assim, não obstante americanos, deveriam
estar presentes em todas as nossas casas. Deveríamos erigir-lhes estátuas, umas
pequenininhas, portáteis, outras grandalhonas, como a do Visconde Cairu, o
senhor não acha?
— Já que o senhor
está dizendo...
Era um epígono e me olhava esquisito. Pedi-lhe um lenço
emprestado, tinha saído às pressas de casa, não apenhara o meu, mas ele disse
que não tinha lenço e eu me aporrinhei comigo mesmo, estava suando como um
porco. Esforcei-me por não dizer mais nada àquele sujeito, mas disse-lhe quando
ele, puxando o cordão, deu ordem de parada ao ônibus.
— O senhor é um epígono dos ignorantes chapados!
Ele se levantou, pedindo licença, e saltou no “ponto” da
Base Baker. Vi-o caminhando em direção ao Plano Inclinado que liga aquela parte
da cidade baixa com o bairro de Santo Antônio, lá em cima, e imagina algo que
me agradou: quando os tanques explodirem aquele sujeito explodiria também e o
mundo não perderia nada de valor.
Desci na Praça Cairu, um sol terrível, sol de meio dia, e
vi que não existiam mais as poças d’àgua nem as cascas de frutas, a estátua do
Visconde, porém, estava lá, duro, poseur, em metal azinhavrado aquele Visconde
que tinha pulmões de bronze. Eu fumei e minhas mãos tremeram quando acendi o
isqueiro. Usava cigarro de filtro e além dos filtros uma piteira, protegia-me.
Eu me disse que estava ruinzinho, as mãos tremulas e suando mais que o normal.
Seria aconselhável uma dose de “lambretas”, no Mercado Modelo. Bebi três
cachacinhas e as ostras estavam ótimas, cruas, grandes, e vi os saveiros e me
disse que um dia ainda faria o roteiro de “Mar Morto”, mas Helena Inês” não
seria Lívia porque Lívia fora bem morena, lábios carnudos,e Helena Inês era
loura, esguia, lábios finos, como os lábios do Sr. Élvio, e bela, Helena
lembrava-me Diana Caçadora,os cabelos à grega, e me lembrei que Nestor Duarte
no Rio, muitos anos antes, me oferecera camarões à grega, no restaurante Casa
do Estudante, eu, ele e o Dr. João Falcão, mas não tinha mais tempo para
almoçar, iria direto ao jornal que meio dia estava dando, pouco mais de meio
dia. Quando subi para a Cidade Alta, numa das cabines do Lacerda, reparei que o ascensorista não fora o da véspera, e
me vesti com minha seriedade profissional. Circunspectei-me devidamente e
quando entrei no edifício do jornal nem dei boa tarde a telefonista. Bati a
cabeça, gesto germânico, e perguntei se alguém me tinha procurado:
— Um sujeito magrinho, pálido... — eu disse.
— Não, senhor.
— Bom... — eu grunhi.
Entrei em cena, um ator razoável, a teoria brechtiana da
distância, V. Effect, e os rapazes, que eu dirigia, lá estavam no fuzuê
habitual. Distanciei-me, severo, e chamei o “boy”. Dei-lhe dinheiro para pão
com salame e refrigerante, gasosinha de limão, e fui permitindo, atendendo um e
outro, que a rotina me dominasse. Bom remédio qualquer rotina. A gente vai se
ausentando da nossa vida e penetrando na vida da multidão, da cidade do mundo.
O governador ia conceder entrevista coletiva, 17 horas, o
sujeito da SUNAB queria ser ouvido sobre o aumento da carne verde, haveria
assembleia dos funcionários públicos açodadíssimo na campanha por aumento de
vencimentos, Helena Inês ia chegar do Piauí e não sei perguntei a um foca que
era meu fã:
— Meu filho, você sabe por que a gente diz “agora é
tarde, a Inês é morta”, você sabe, meu filho?
Era um bom foca:
— Não, —
respondeu.
Eu aconselhei:
— Meu filho, você precisa estudar a História de Portugal
Prometeu que iria ler e me respondeu que havia lido
Harvey O’Connor e eu falei a ele, Tetê-tete, como se desovasse um segredo,
minhas idéias sobre os tanques de gasolina e querosene, iriam mais cedo ou mais
tarde, e ele se ofereceu para preparar a reportagem, garantindo-me um esforço
sério, de pesquisa, e eu disse:
— Faça, meu filho, faça a reportagem com sua melhor
consciência profissional. Apure tudo: o poder explosivo dos tanques, a provável
área de destruição, um cálculo aproximado do número de mortos e feridos, uma
avaliação correta dos prejuízos materiais, em cruzeiros e em dólares, tudo, meu
filho, sim, faça a reportagem, umas oito laudas, meu filho, e depois vamos
cagar juntos e nos limparmos com cada uma de suas laudas e trautearemos o Hino
Nacional, A Marselhesa, a Internacional,uma lauda para cada hino...
Ele ficou triste,o foca amigo, e eu me exprobrei, porque
se estamos cínicos e prostituídos, não devemos intencionalmente transmitir a
doença a ninguém. Ele ficou triste e quis ajudá-lo a reencontrar sua alegria
moça. Disse-lhe:
— Esqueça, filho, vá entrevistar Helena Inês e dê-lhe um
beijo por mim,diga-lhe que ela é loura e bela, não é a Lívia que imagino. A
Lívia que imagino é morena, de lábios carnudos, algo assim como a Dina Scher,
mas Dina Scher é grande demais, mulherona à beça...
Era uma tarefa importante, eu me atrevia entregando-a a
um foca, porque Helena Inês ia ser atriz de um filme baiano e ele me pediu
fotógrafo. Eu dei a ordem, por escrito, determinei três fotos no máximo, nada
de poses, e ele saiu sorrindo. Depois, um a um, os outros repórteres e focas
foram saindo e eu fiquei, preocupado com um flagrante que, na véspera, havíamos
armado: corrupção de uns merdóides funcionários municipais. Era o único prato
bom,poderia dar manchete. O resto, rotina pura, às 16:40 o repaz da recepção
telegráfica veio me avisar que Marilyn Monroe tinha morrido, suicídio, e eu
achei boa coisa porque me garantia uma das ilustrações da primeira página, bela
Marilyn, com certeza cansara-se de Arthur Miller e se entendia com a
perspectiva de rebolar-se noutras caçadas sexuais. Eu não conseguia ver Marilyn
na vertical. Imaginava-a sempre deitada. Talvez eu me estivesse a por injusto,
talvez um câncer? O telegrama era seco, inumano, Marilyn matara-se mas não se
sabia porque. Eu desci e perguntei à moça da portaria se o tal sujeito magrinho
não me tinha procurado...
— Um sujeito
pálido, os lábios finos, chamado Élvio, não?
— Não, com certeza
— ela disse.
— Eu disse “porra”!, mas baixinho, para que ela não me
ouvisse e fui ao bar próximo. Pedi umas agulhas fritas no dendê e bebi um copo
de cerveja. Não cheguei a beber o segundo. Algo me avisou que o Sr. Élvio
poderia aparecer e aquela moça da portaria seria suficientemente para dar-lhe
uma resposta seca, “não, não está, saiu” o que faria dar-lhe uma bofetada, mas
para que isto não sucedesse eu baixei meu copo , disse a Gonçalo, o garçom, que
ia ali, no jornal, ele não permitisse que as moscas pousassem em meu copo e nas
minhas agulhas brancas fritas no dendê. Disse à moça da portaria:
— Se aquele sujeito magrinho e pálido aparecer me
procurando diga que eu estou no bar e
mande que me espere e mande o “boy” me chamar,claro?
Ela disse que sim, estava claro, mas tinha outras
dúvidas:
— Qualquer pessoa que venha me procurar, mesmo que seja
uma pessoa gorda,mande me esperar.
— Sim — ela disse. Eu voltei para o bar e vi que Gonçalo
era um amigão: com guardanapo ele afastava as moscas e me perguntou, quando
sentei, se não queria umas pedras de gelo, que a cerveja estava esquentando.
Informei que não gostava de cerveja gelada e disse que estava tudo bem. Comi as
agulhas brancas ao dendê e me lembrei de meu pai: ele tinha uma receita
magistral para moquecas de agulhas brancas. Não usava o dendê. Preferia
cosê-las no azeite português,o Galo. Era um manjar. Disse ao Gonçalo que ele
experimentasse a moqueca branca e ele respondeu que ia experimentar e quando
paguei fiz mais do que lhe dar uma gorjeta razoável . Desejei uma morte por
infarte fulminante, pelo amor de Deus
não me aparecesse com um câncer, mas não cheguei a articular uma palavra. Tudo
imaginado. Gonçalo sorriu de minha pressa e a moça da portaria também estava
sorrindo quando lhe apareci:
— Ninguém, Sr. Guga, ninguém...
— O quê? — perguntei, chateado.
— Ninguém procurou o senhor.
— Não lhe perguntei — disse com cara fechada.
Eu pensei... — ela começou a desculpar-se.
— Não pense — eu disse. — A senhora não está aí para
pensar coisa nenhuma.
Ela se agastou, visivelmente, e eu temi que me pudesse
fazer uma falseta, despedindo o Sr.Élvio, quando ele chegasse. Disse:
— A senhora releve minha grosseria. Estou cansado...
Ela aconselhou:
— Peça suas férias, Sr. Guga,o senhor precisa.
Eu sorri e ela sorriu também, ficamos amigos e eu reparei
que deveria ser uma mulher gostosa. Tinha os seios grandes, como os de Marilyn
Monroe e eu disse:
— Sabe quem morre?
—Não, quem?
— Marilyn Monroe. Suicídio.
Ela disse “oh, que pena!” e depois perguntou:
— Como é que uma mulher tão bonita e tão rica como ela
poderia pensar numa coisa dessa? Matar-se?
Achei a pergunta interessante e quase me abri com a moça
da portaria, mas resolvi matar o assunto:
— Muitos motivos,
D. Ana, muitos motivos. Se a senhora tivesse lido Shakespeare, D. Ana, a
senhora saberia que há muitos mistérios entre o céu e a terra ininteligíveis
para a nossa vã filosofia. Vou subir, D. Ana. Me avise qualquer coisa.
Ela bateu a cabeça, me avisaria; e quando eu cheguei à
redação estava bem calmo. Às 18 horas eu soube que dera certo flagrante contra
os corruptos. As 18:30, que o governador cancelara a entrevista coletiva. As
18:45 mijei com gosto. Às 20 horas, como de hábito, justo no momento em que eu
distribuía os originais com os reescrevedores,indicando-lhes os “leads” de
minha predileção, o diretor mandou o “boy” me chamar ao seu gabinete, onde
ouvíamos, eu e o chefe da redação longos bolodórios sobre a luta contra a
corrupção, sobre nosso deplorável complexo de inferioridade nacionalista, sobre
o papel das Força Armadas na manutenção da ordem, e, acima de tudo, sobre o
empenho de todas as autoridades —
municipais, estaduais e federais — na preservação do regime democrático. Dizíamos:
— Claro, doutor, claro.
E, no fundo,mandávamos o diretor à merda. Simultaneamente
cheirávamos-nos mal, uns aos outros, estávamos podres, sabíamos que estávamos
podres, câncer na alma.
O diretor quis saber:
— Algo bom, local, para manchete?
Fiz o inventário do que tínhamos, e, no fim, dei-lhe a
história dos fiscais da Prefeitura. Tudo documentado: nomes dos raposinhas,
nomes ds testemunhas, uma foto do espanhol que concordara em bancar o corrupto
a pedido do Diretor da Receita, de quem iria obter vantagens cadastrais, fotos
(péssimas, aliás) do momento do flagrante , tudo.
— Parece um bom prato — ele disse, puxando os fios do
bigode grosso e agrisalhado, a boca de dentes nicotinados, nariz de pele grossa,
mas a fala era fanhosa, metálica, antipática.
— Soltamos isto? — perguntei
— Vamos ver, vamos ver. Deixe aí que vou ler tudo.
Ele mordeu a ponta do charuto e ficou olhando para mim
com sua cara de banjo. Ele era um sujeito sujo, rico e sujo, sangue de barata
nas veias, frio como um gelo, mas sabia cheirar uma notícia, assim como os
urubus experientes apercebem-se , não importa que distância, as carniças
apetecíveis e nelas se cevam. Sim, identificávamo-nos e nisso havia algo
instintivo. Ademais, ele era estouvado, tanto ou mais do que eu, e também nele
havia necessidade de isolamento periódicos, o se afastar dos ruídos e das multidões, mas temia o mar, se havia a
noite, temia ser descoberto nu, o pênis assentado contra a lua. Preteria o
trabalho e a família, quatro cinco vezes por ano, perdendo-se nas suas terras
de engordar gado, em Conquista, o companheiro era um capataz, silente, de temor
ao seu dono. Outras vezes, sozinho igualmente, largava-se para Europa, Paris e
Berlim, Londres e Genebra, fugindo dos brasileiros como o diabo da Cruz. Mal
sabia umas frases de inglês e com isso bastava. Queria-se desconhecido, igual
aos outros, solitário.
— Volto limpo de tudo — ele me dizia.
Eu pensava:
— E vai enlamear de novo. Porque o núcleo da sujeira não
foi lancetado. O pus está lá, indene, agindo...
Mas não lhe dizia. Limitava-se a escutá-lo. Ele pagava,
eu servia, aquelas confissões superficiais eram uma tentativa empática, para
comover-me. Explora-se melhor um empregado quando se lhe doma, simultaneamente,
a consciência e o coração. Eu resistia. Gostava de me espiar nos olhos, como se
dispusesse a “pegar sério”. Eu me mantinha imóvel, duro, olhado-o nos olhos,
com raiva, xingando-o, definindo-o como uma prima-dona das prostitutas do
jornalismo mundial e ele ia abaixando as pálpebras, lacrimejando os globos
oculares, incapaz de, mentalmente, ultrajar-me como eu o ultrajava. Seu arsenal
de xingamentos contra mim era micho e minhas munições contra ele eram poderosas,
inesgotáveis. Dominava-o com os olhos, naquele jogo em que prevalecia meu controle
sobre os músculos oculares e glândulas
lacrimais. Uma coisa idiota, admitia e admito, mas era gostoso xingá-lo
mentalmente, pensando o que eu não tinha coragem de dizer, às claras. Éramos
muitos, assim na redação, devidamente bêbados, nos mijamos de rir ao
imaginarmos hipótese sobre a melhor maneira de matá-lo. Concluímos pela
necessidade de sangrá-lo com picadas de alfinetes, o corpo inteiro, e, depois,
atirá-lo, os pés amarrados com arame, um riozinho que povoaríamos com piranhas
ferocíssimas.
Eu tenho a impressão, e a preservo sem muito empenho, que
ele, devido a uma premonição qualquer, adivinhava nossos pensamentos mais
recônicos e se entristecia. É possível. Ele não chegava a ser um Hearst, nem um
Dubois, sequer um projeto do Joiot de Desser, o argentário Joliot de “La Voie
Nouvelle”, ambicioso e sem escrúpulos, faturando nos altos círculos de Paris
pré-guerra. Era somente um limitado diretor de jornal de província que se
julgava importante e rico, com essa certeza tola. Faltava-lhe a grandeza dos criminosos de alto bordo e ao mesmo tempo
não tinha coragem de descobrir-se apodrecido. Queria disfarçar, com aquelas
confissões, seus tumores e seus pênfigos, desejava camuflá-los com tinta verde
e cor de rosa e então se confessava impossibilitado de fugir das tenazes
publicitárias: me assegurar que, num tempo próximo, consolidaria
financeiramente o jornal e surgiria, por obra de uma demiurgia absurda, o que
chamava de “o momento de grandes verdades”.
— Como? — eu perguntava.
— Não sei, pressinto... — dizia.
— Pressente a partir de que? — eu insistia.
Deixava-me sem resposta, suspirava com certo langor, e
eu, momentaneamente inebriado, punha-me a supô-lo capaz de tornar-se que aquela
facilidade, era umas minhas besteirinhas, porque o homem mudava nas horas
seguintes, recompunha-se inteiramente prostituído podre dos pés a cabeça,
medindo os centímetros do espaço publicitário, esculachando, aos gritos, o
gerente Ernesto, acusando-o de não entender patavinas das coisas da empresa,
sequer estabelecer “half –and-half” para matérias e anúncios.
— Essa besta desse
Ernesto — dizia a quem quisesse ouvir —
não sabe quanto me custa uma folha de papel, quanto mais uma bobina, ou não é?
— O quê? — Eu perguntava provocativo.
— Essa besta não sabe quanto me custa uma folha de papel,
quanto mais uma bobina! — repetia.
Ernesto era um bom sujeito, pai de seis filhos, sabia-se
constantemente esculhambado, mas, como dizia, aguentava o rijo, e xingava a
prima-dona, mas não nos achava prostituta. Dizia-nos que, na redação, pelo
menos, conseguíamos uma coisa e outra, a muque, é bem verdade que a muque, mas
conseguíamos, de qualquer modo conseguíamos. E nos estimulava a que
obtivéssemos mais. Sugeriu-nos, certa vez, uma reportagem de página inteira
sobre sobrevivência do nazismo na Alemanha Ocidental, para ver se a Mercedes
Benz recuaria de um contrato quase fechado. Largamos a página, eu e o chefe de
redação, mas o contrato veio de qualquer modo, dinheiro grosso, e o diretor
baixou a ordem:
— Quero ler tudo sobre a Alemanha, tudo!
Mordemo-nos de raiva e agora, ali, vendo-o a gelar a
reportagem sobre os fiscais corruptos, eu já o adivinhava a pegar o telefone,
disposto a comunicar-se com o Prefeito de modo a informá-lo sobre o suborno flagrado,
antecipar que o jornal iria exigir, em matéria editorial, a abertura de
rigoroso inquérito, até porque — ele gostava da frase — “nossa luta básica é
contra o roubo e a corrupção”.
— Posso ir? — perguntei.
Ele fez um gesto seco, eu desci para redação e de novo
desapareci no meio da papelada , em busca de porcaria para encher as páginas de
assuntos locais. O porteiro me interrompeu e disse:
— Está aí um sujeito amarelado e magrinho, mando entrar?
Havia sempre, para ver-me, no jornal, dezenas de sujeitos
amarelados e magrinhos. Nossa gente é sempre amarelada e magrinha. Eu disse:
— Mande.
Aquele sujeito amarelado e magrinho era o Sr.Élvio. Foi
ele quem entrou na redação, desajeitado, empós o porteiro. Eu me levantei e o
recebi excessivamente alegre.
— Ótimo, Sr.
Élvio, ótimo que o senhor tenha vindo!
Ele me deu boa noite, estendeu a mão fria. Tomei-a com as
minhas, apertando-a calorosamente, como a querer transmitir-lhe todo o meu
contentamento. Mandei que se sentasse ao meu lado. Pedi:
— É só um momento,
Sr. Élvio, é só o tempo de eu soltar umas coisas aqui,tenha paciência.
Ele disse “sim espero, espero, não tenho pressa” e ficou
a espiar o vugue-vigue da redação na hora de fechar as últimas páginas, o rush
final. Antes do Sr. Élvio aparecer-me com toda aquela sua simpática
simplicidade, eu estava profissionalmente apreensivo. Além da história dos
fiscais corruptos, que o diretor podia tanto gelar quanto esquentar, a depender
de suas conveniências, nada havia de bom para manchete. Os boiotas da página de
polícia o que me haviam dado era a chinfrineira de sempre. A politicaria local
estava na entressafra das disputas eleitorais, sem nada de interessante.
Pasmaceira, completa,
total e absoluta pasmaceira, eis o que encontrei na seção internacional. Tudo
se resumia no palavrório de sempre: bochicho entre indonésios e papuas, russos
xingando chineses e chineses xingando russos, conflitos raciais dissimulados
nos Estados Unidos, a guerrinha chata, modorrenta, no Viet-Nam do Sul,
conferência em toda a parte, a discursaria dos diplomatas, mas , de concreto,
“niente”, como dizia o “escuta” de emissora europeias que bispava algo de
italiano. Voltei-me para o “escuta” das estações de língua inglesa e o bostóide
informou no seu linguajar sujo:
— Além daqueles troço de Marlyn, tudo merda. No entanto,
a rainha Elizabeth amanheceu gripadinha...
Olhei-o com ar severo, ele riu sem jeito e fui para a
seção de assuntos nacionais, de onde sai com as mãos vazias, mas não estava
mais chateado. A presença do Sr. Évio, pálido e magrinho, o câncer nos pulmões,
infundia-me não direi um contentamento, uma alegria, mas uma grata
responsabilidade, a consciência de que eu teria amplas oportunidades de cumprir
meu dever social. Eu havia lido Mira y Lopez, “Quatro Gigantes da Alma”, e
valorizava adequadamente a tarefa que me impusera, julgava-me à altura de
trabalhá-la sem os prejuízos do egoísmo benthanista. Rigidez moral, máxima
rigidez moral. A concessão que eu me propunha era rigorosamente profissional.
Se o diretor não liberasse a reportagem dos cocorocas municipais, eu largaria
da manchete os últimos desaforos dos chineses contra os russos e pronto. Não
tinham a perder. Importante era o Sr Élvio, a morte do Sr Élvio, acontecimento
que eu iria preparar nos mínimos detalhes, de modo que os benefícios
alcançassem a todos.
Espiando-me de sua saleta o chefe da redação, que tinha
de aprovar, dando-lhe por vezes as últimas demãos, todas as matérias de
primeira página, fazia gestos com os ombros, a pedir a maçarocas, dezenas de
laudas empilhadas, elaboradas pelos reescrevedores. A foto, graças a Deus, a
foto de primeira página, eu já a tinha em mãos, Marilyn, agora morta, estômago
roído por corrosivos não indicados, estava sorrindo sobre minha carteira, 18
por 14, as grandes e belas coxas, os seios avantajados, e rindo, Marilyn rindo,
entre ingênua e sensual. Eu olhava Marilyn, penalizava-me, quando um foca
estúpido, que fazia sua subliteratura nas máquinas da redação, coisa que um dia
eu inda iria proibir, me perguntou.
— É lésbica ou lesbiana?
— Quem — eu perguntei, chateado.
— Queria saber se o certo é lésbica ou lesbiana?
— As duas formas — eu disse.
— Aquele não era um mau sujeito e quando ia saindo, eu
aconselhei:
— Bota lésbica, meu filho. Lesbiana é linguagem de doutor
em História. Jornalista escreve lésbica porque o povo diz lésbica e como você
deve saber “vox populi vox Dei”. Não é isto mesmo Sr. Élvio.
O Sr. Élvio sorriu distante e disse:
— Não sei. Eu não sei o que é lésbica e não sei essa outra
coisa que o senhor disse.
O foca riu e eu o olhei com raiva.
— Quer fumar, Sr.
Élvio? — perguntei.
Ele disse que queria, já não lhe faria mal fumar, e eu
lhe dei o cigarro, acendi-o e depois acendi o meu, usando piteira. Da saleta o
chefe da redação voltou a suspender os ombros, a agitar as mãos dando-me pressa
e eu gritei:
— Vou ver se solto a coisa dos funcionários, vou subir...
Ele bateu a cabeça, e mandou que eu subisse, rápido,
queria logo beber os shops, estava tudo tão chato, eu me desse pressa,
chispasse. Pedi ao Sr. Élvio:
— Vou ali, me espere.
O Sr. Évio limitou-se a olhar-me com seus olhos frios e
nada disse. Na porta, com medo que ele me fugisse outra vez, voltei-me sobre o
corpo alto:
— Tenho ótimas notícias para o senhor, Sr. Élvio, não
saia!
Os olhos dele esquentaram um pouco e eu repeti:
— Ótimas notícias, Sr. Élvio, ótimas notícias.
Subi aos pulos os três lances de escada que separavam a
redação do gabinete do diretor e quando entrei ele acabava de colocar o
telefone no gancho. Sorria e me recebeu com um elogio.
— Bom trabalho.
Apanhei o material e perguntei:
— Vamos soltar?
— Claro! No entanto é preciso o nome do Diretor da
Receita. Basta dar o cargo. Apare também os elogios. Por que se cevar o homem
desse jeito? Cumpriu a obrigação e isto é o normal...
— Mas, o homem foi batata conosco, nos deu exclusividade
e eu penso...
— Não pense, não me importa o que você pensa. Outra
coisa, faça uma declaração para o Prefeito, insinuando que estava ao par de
tudo, abrirá inquérito rigoroso, essa coisa toda. Entendido?
Eu estava na porta quando ele me chamou e deu a ordem
final:
— Mude o lead. É conveniente mudar o lead. Bote que o
gabinete do Prefeito , em nota oficial, etc. e etc; informou que vai abrir
inquérito rigoroso, etc. e etc; entendeu?
Não adiantava discutir, eu disse que sim, ia mudar o lead
e não daria fotos, que, eu estava de acordo, eram horríveis, mas chutar o
fotógrafo não seria o caso. Ou Seria?
— Ele é bonzinho. Burrou hoje, deixe...
O fotógrafo era um pretinho de Alagoinhas, novo na
cidade, ganhava uma porcaria, chaleirava o diretor trazendo-lhe uns requeijões
de casca dura, na ânsia de garantir o emprego, mas isto me interessa muito
pouco. Desci às carreiras. O Sr. Élvio, graças ao Senhor do Bonfim, ainda
estava me esperando e eu lhe bati no ombro esquerdo:
— Mais um minutinho Sr. Élvio, agora é mesmo coisa de um
minutinho...
Ele perguntou afobado:
— O senhor tem boas notícias para mim de verdade?
— Sim, Sr. Élvio, tenho boas notícias. Espere um minuto
mais.
Ele ficou assistindo meu baticum na máquina, mudando o
lead e escrevendo para o Prefeito uma declaração muito circunspecta, no estilo
tradicional. Depois, antes de entregar a maçaroca de matérias ao chefe da
redação, para que ele selecionasse as bobagens de seu agrado, eu mostrei a foto
de Marilyn ao Sr. Élvio:
— Bela mulher, Sr. Élvio, bela mulher.
— Sim — ele disse, sem entusiasmo.
— Morreu hoje, Sr. Élvio, suicídio...
Ele disse “oh! É uma pena!...” e eu disse:
— Uma morte besta, Sr. Évio, sem motivo, uma morte
egoísta, desespero puro, Sr.Élvio, e nada há de menos cristão que uma morte
assim. Morreu por nada, absolutamente nada.
O Sr. Élvio ficou olhando as coxas de Marilyn, mas eu
tinha pressa e pedi:
— Vou ali, Sr.
Élvio, um minuto.
Entreguei os troços ao redator-chefe, sugeri que ele se
virasse não contasse mais comigo e voltei rápido para o meu canto.
— Agora, Sr.Élvio,
agora nós — eu disse.
— Quais as boas notícias? — ele perguntou, afoito.
Usando a piteira acendi outro cigarro,ofereci mais um ao
Sr. Élvio, e pensei na abordagem do problema. Traguei fundo e decidi que um
pouco de história, para iniciar um diálogo que desejava produtivo seria, nas
circunstâncias, o mais são.
— Penso, — disse — que devemos começar tudo do princípio, de
modo que o senhor possa compreender meu
ponto de vista sobre o problema do senhor e o acordo que estou autorizado a lhe
propor.
— Um acordo?
— Sim, Sr. Élvio,
um acordo bom para todos.
— Todos? Que todos? Não entendo... — ele
parecia sinceramente surpreendido.
— Eu explico, Sr.Élvio. O senhor permite que eu explique
nosso esquema?
O Sr. Élvio me pareceu não ter ouvido. Havia uma
barulheira infernal na redação, uns focas fazendo sambinha num canto, outros
idiotazinhos discutindo russos e chineses no outro, o “escuta” que sabia
italiano a imitar um capenga, molequeira geral, comportamentos inadmissíveis, e
eu gritei:
— Calem-se!
A zoada diminuiu um pouco e o Sr. Élvio de novo atento, a
surpresa ainda nos seus olhos, eu disse:
— Redação de
jornal é assim mesmo, Sr. Élvio, só dá malucos e capadócios, mas a verdade é
que todos trabalham duro. Isto é assim desde o meio-dia, compreenda...
— Que acordo? —
ele tornou a perguntar.
Eu apaguei o cigarro com o indicador e o polegar e disse:
— Vamos começar do início, Sr.Évio. O senhor vai
concordar que eu lhe era um desconhecido, não sabia da existência e o senhor,
igualmente, nem se dava conta que eu existia. Vivíamos vidas diferentes, Sr.
Élvio, o senhor no sul, eu no norte, nunca nos encontraríamos. Naquela noite o
senhor ia suicidar-se daquele jeito, uma bobagem, e eu resolvi segurá-lo. Impei
que o senhor morresse sem que nem praque. Não é certo, Sr. Élvio?
— Justo.
Pausadamente, recordei todos os episódios da noite
anterior, aqueles primeiros momentos da madrugada, as cascas de frutas, os
cigarros fumados, as laranjas que apodreciam, a despedida e sublinhei :
— Agora, Sr. Élvio, é o quem me procura e já imagino
porque. Penso que o senhor deseja que eu
redija suas últimas cartas e eu...
— Não, eu não vim pedir ao senhor que faça cartas para
mim, eu não vim pedir nada disso. Porque eu decidir que não me matarei mais. Eu
resolvi morrer como Deus manda. Eu não quero cometer o pior de todos os
pecados.
Aquilo me desarmou e traguei fundo o cigarro.
— O senhor desistiu? — eu perguntei.
O Sr.Élvio apenas bateu c cabeça e eu insisti:
— Depois de toda aquela patacoada o senhor vai desistir?
De novo bateu a cabeça.
— Sua família já sabe?
— Não, ninguém sabe nada — ela informou, levantando-se
De pé, olhado-me, amarelado e magrinho, aqueles lábios
finos, ele tornou a falar:
— Passe bem, o senhor...
— Então o senhor vai permitir que a doença lhe invada todo
o organismo, apodrecendo-o, minuto a minuto?
O Sr. Élvio mostrou-se confuso e prossegui:
— O senhor já viu, Sr. Élvio, um homem morrer de câncer,
e câncer nos pulmões, o senhor já viu?
— Me disseram...
— Eu perguntei ao senhor: o senhor já viu?
— Não, nunca vi.
Pedi:
— Sente-se, Sr. Élvio, por favor. Sente-se.
Ele obedeceu. Continuei falando, medindo as palavras
desejando-as poderosas:
— Eu já vi, Sr. Élvio, ao longo de meses. Em minha casa,
Sr. Élvio, dia após dia, noite após noite, a tal ponto que, por piedade, mais
de uma vez tentei apressar-lhe a morte. Era o meu sogro, Sr. Élvio, foi terrível.
Se o senhor fosse homem de posses, sua morte seria mais suave. Há remédios que
eliminam ou pelo menos amenizam as dores. No entanto, custam os olhos da cara,
Sr. Élvio, e o senhor, pelo que sei, é um homem pobre, um bedel de colégio
oficial, pouco mais do que o salário mínimo e sua mulher, pelo que antes o
senhor me disse, costura de ganho, e pequenos, Sr. Élvio, não podendo ajudá-lo
em nada, são os seus filhos. Dia após dia, veja bem, dia após dia, noite após
noite, eles terão ante os olhos a morte em casa, a morte em cada minuto. A sua
morte, Sr. Élvio, há de marcá-los a todos. Eu repito, Sr. Élvio: e uma morte
terrível. No começo, e sempre, as dores lancinantes, incontroláveis. Depois, o
senhor entrará na fase da caquexia. A caquexia é terrível, Sr. Élvio.
Eu suava. Havia medo nos olhos do Sr. Élvio. A redação
ia-se esvaziando. Eu falava prendendo as palavras, para que elas não
explodissem, e não mentia. Eu estava apaixonado pela morte do Sr. Élvio, queria
prepará-la a todo custo. Continuei:
— Não quero amedrontá-lo, Sr Élvio, mas é terrível. Na
fase da caquexia as pequeninas vidas que
há no senhor passam a matar-se. A vida toda, ela própria, se mata, a vida se
autodestrói e o corpo todo vai afinando, sua pele ficará verde amarelo, e
nenhum milagre poderá impedi-lo. Até Deus Sr. Élvio, até Deus é inútil contra o
câncer!
Sem escândalo, mansamente, o Sr. Élvio foi abaixando a
cabeça e começou a chorar. Me comoveu. Aquele choro vibrou nos meus músculos,
nas minhas fibras e eu aconselhei:
— É bom chorar, Sr. Élvio, chore.
O chefe da redação, quando levantei a vista, estava-me a
olhar-me. De cabeça baixa, o Sr. Élvio não o viu e continuava bastante
emocionado para pressenti-lo. O chefe da redação, com gestos, perguntou:
— Que coisa é esta? Que tipo é este aí?
Pedi-lhe:
— Me espere no bar, é num minuto.
Ele deu de ombro e saiu. Na ampla sala da redação
permanecemos sozinhos, eu e o Sr. Élvio. Ele continuava a chorar. Na rua, que
eu divisava da janela, vi o chefe da redação caminhando em direção ao bar e me
ocorreu que ele, embora jovem de muito talento, excelente editorialista, não
tinha ainda suficiente experiência para apoiar-me no esforço de construção da
morte do Sr. Élvio. Se eu lhe expusesse o problema, ele me aconselharia a pô-lo
de lado, não criasse mais complicações, bom era beber, caçar umas mulheres,
ouvir discos, ver bons filmes, viajar. Era um homem de prazeres simples,
mesquinho também ele.
Ouvi o Sr. Élvio mexer-se na cadeira, temia que o
diretor, ao descer do gabinete, invadisse a redação, nos encontrasse,
reclamasse contra as luzes ainda acesas.
Disse ao Sr. Élvio:
— Eu sei que é duro, amigo velho.
O Sr.Élvio tornou a baixar a cabeça, pudor para que não o
visse concluir o choro. Eu pensei em fazer um discurso inflamado, dizer-lhe
face-a-face: “não se acovarde, Sr Élvio, comporte-se como um homem, um lutador,
não veja apenas os interesses de sua mulher e de seus filhos, olhe mais longe,
Sr Élvio, olhe a Humanidade inteira. Se o senhor morrer em sua casa, sofrendo
bestamente, o senhor não será mais do que
um morto comum. E eu quero fazê-lo um grande morto, um morto-herói, um
morto útil, um porta estandarte das idéias mais avançadas”. Pensei em agregar:
“sua morte será um instrumento para que, embora numa província pequena como a
nossa, um morto de boa razão, de emoção controlada, um morto desprovido de
egoísmo estúpido, possa dizer verdades puras que pareceriam ridículas na boca
de um vivo. Hoje, Sr. Élvio, por uma desgraça que não sei explicar, as coisas
mais simples e mais belas tornam-se ridículas, ri-se dos sentimentos mais
ternos. Romeu e Julieta seriam tratados aos risos, as chacotas, o senhor
entende Sr. Élvio?” . Mas certo, não me compreenderia. Depois talvez, numa
outra etapa, quando fosse organizador dos seus últimos dias de vida e de sua
morte, ele poderia discutir comigo aqueles temas. Decidi convencê-lo com uma
linguagem e uns propósitos terra-a-terra. Disse:
— Vamos indo, Sr.Élvio, vamos conversar na rua.
Ele se levantou, mais pálido e mais magrinho do que
nunca, e, caminhando para a porta, depois
para o elevador, eu lhe disse:
— Antes de tudo, Sr. Élvio, veja os interesses de sua
mulher e dos seus filhos. Quando eu me proponho a organizar sua morte, dar-lhe
uma utilidade, ao mesmo tempo eu proponho a organizar a vida e o futuro de sua
mulher e dos seus filhos. Afinal, Sr. Élvio, eles não têm culpa se o senhor
morrer como eu já lhe descrevi, o senhor estará a matá-los também. Será que o
senhor não entende que eu tenho razão?
Hoje, aqui, depois de tantas drogas que me injetaram e me
fizeram engolir, epois dos choques elétricos, do palavreado científico
empurrado meus ouvidos adentro, hoje eu
não sei se ousaria tanto quanto ousei naquela noite. Intoxicara-me em milhões
de porcaria, querem dobrar-me, há semanas que batalham comigo, procurando
anular minhas vontades, minha inteligência, forcejam para obnubilar minhas
memória, endurecer meu coração. Querem que eu pense igual a eles, e aceite,
como eles aceitam, toda a estupidez e todo o ódio que hoje presidem as ações
dos homens — e assim possa considerar normal o que é
indigno, possa entender ordenado o que é desordem, deve calar-me quando quero
gritar, denunciando o absurdo crime. Então, por isso, devo fingir. Devo simular
concordância com o que eles dizem. Devo rir com eles, chorar com eles, para
que, o mais cedo, possam dizer-me: “amanhã você sairá, amanhã...”
Na rua, o Sr. Élvio limpando os olhos com a manga do
jaquetão, eu lhe disse:
— Venda-me sua
morte, Sr. Élvio, em benefício de sua esposa e de seus filhos. Creia em mim, eu
a tornarei benéfica a toda Humanidade.
— Não sei, tenho
medo — ele disse.
Insisti:
— Sr. Elvio, por favor, ouça-me com toda atenção
possível, ouça-me. Se o senhor é incapaz de se ausentar do seu problema e
projetar-se distante, se o senhor é incapaz de imaginar sua morte como um
tijolinho necessário à construção do amanhã, pelo menos, Sr. Élvio, me diga que
estou errado, me convença que estou louco, ou então...
— Eu gostaria de
ser útil — ele disse afinal.
Eu quase gritei:
— Isto, Sr. Élvio, isto. É assim que se fala. Um homem
fala assim, Sr. Élvio, mesmo na pior adversidade um homem deve ser um homem. O
senhor é um homem, Sr. Élvio, um homem com três metros de altura.
Como tive a oportunidade de explicar, logo nos primeiros
dias de minha prisão, ao médico zarolho e bigodudo, no fundo eu achava o Sr.
Élvio uma merda em copas. Um sujeito comum, mais do que isto, quase um
‘lumpen’, porque os sujeitos simplesmente comuns quando em multidões, quando
apaixonados, são capazes de prodígios. Não, o Sr. Élvio não chegava a ser um
homem comum. Tendia mais para um ‘lumpen’, mas não sobreexistiam nele
aquisições antigas, de aspiração a uma vida melhor, leves condicionamentos
positivos. Eu, ao contrario, compreendia que na construção do amanhã é indispensável alternar tapas e
carícias, amor e ódio. Eu não pensava em função dos interesses imediatos de
fulano e sicrano, sequer dos interesses imediatos de pequenos grupos, por mais
circunstancialmente importantes que parecessem. Atribuo indispensável ao
construtor do amanhã o não identificar rostos na multidão, mas vê-los todos,
fundí-los todos, e seja a multidão um rosto só, um sofrido rosto, e ajude-o com
toda a paixão, sem temor dos percalços. Além da cidade, do Estado e da Pátria.
Nada nem ninguém deve impedí-lo, porque os construtores do amanhã se estão
transformando na multidão, malgrado tudo, sim, malgrado tudo. Ao médico, na
pretensão idiota de querer convencê-lo, no esforço de levá-lo a acreditar na
existência do Sr. Élvi, no meu plano de
prepará-lo para a morte útil, fiz este discurso,pleno de sinceridade, e sabem o
que o imbecil me disse com seu silêncio? Disse-me com aqueles olhos frios, um
defeituoso: “você ainda está ruinzinho...” E com a boca, ele me disse: “esqueça
o Sr. Élvio, pense no seu lar, seus filhos, sua mulher”. Um estúpido! Cabrão,
impossível que ele não fosse um cabrão.
Usando uma piteira eu acendi novo cigarro, ofereci outro
ao Sr. Élvio. Disse-lhe:
— Torne-se rijo, duro, Sr. Élvio.
Ele me olhou como se não entendesse. Eu disse:
— Teremos muito trabalho até a dia da sua morte. Vamos
trabalhar juntos, Sr. Élvio.
Ele respondeu:
— Sim.
Pus-lhe meu braço esquerdo sobre seu ombro e caminhamos
juntos até a ponta do passeio. O diretor veio em nossa direção e eu disse ao Sr. Élvio:
— Não diga uma palavra, Sr Élvio, nada. Não diga nada.
O diretor me ofereceu uma carona até a estação da Calçada
e eu rejeitei. Disse que ainda ia ao bar mas não o convidei que me
acompanhasse. Se eu demorado com ele mais alguns minutos eu terminaria dizendo
na sua cara: “ sabe, eu deploro que você não possa ser o nosso General Della
Rovere”. Ele disse “bom, até amanhã, olhe esse fígado” e eu respondi um “ciao”,
convencido que ele era irrecuperável. “Campe-se!” eu pensei, vendo-o arrancar
no carro, e ouvi a descarga dos tiros alemães despedaçando-lhe a cara, pondo-o
de tripas para fora. Convidei meu amigo, o Sr. Élvio:
— Tomamos um shop, Sr. Élvio?
Ele pediu que eu não insistisse no convite, queria ficar
sozinho, para pensar em tudo o que eu lhe havia proposto. Insisti e ele
prometeu:
— Hoje não, por favor, hoje não, amanhã.
— Palavra de honra, Sr. Élvio?
— Sim. Palavra de honra.
— Mantendo tudo o que eu disse, Sr. Élvio, mantenho todos
os compromissos. Antes de tudo faremos um seguro de vida para o senhor e eu sei
o jeitinho que a gente dará para isto. Depois, no Rio, eu venderei, por
antecipação, reportagens sensacionais sobre sua morte, Sr Évio, negócio preto
no branco que jornalismo do Rio é dos dinâmicos, lá não se perde tempo e
assunto bom é falta. Venderemos ainda, com exclusividade, toda a filmagem da
cena do suicídio e já me deu mesmo na cabeça escrever para aquele sujeito que
faz “Mundo Cão” para ele comprar os negativos do filme. Colorido, Sr. Élvio,
sua morte será colorida. O senhor entende?
— Justo, acho justo.
— Além disso, Sr. Élvio, vou escrever sua biogarfia, do
nascimento à morte, sobretudo a nossa preparação da morte, Sr. Élvio, tudo
documentado e ganharemos direitos autorais em dólares, em dólares, Sr. Élvio.
Os americanos não perderão uma história dessas.
— De acordo mesmo, Sr. Élvio? Eu não quero nada para mim.
O que eu lhe peço, apenas, é que me deixe escrever suas últimas cartas. Digamos
assim, umas três cartas. Uma dirigida a sua esposa, um texto afetivo, de
coração a coração. Outra, Sr. Élvio, aos seus filhos. O senhor dirá apenas:
“Meus filhos, leiam isto”: e reproduziremos o “Se” , não o “SE” de Kipling, o
“Se” de Paulo Mendes Campos, “Se” mesmo, humano, positivo, sem grandiloquência
idiotas. Certo?
— Acho justo, justo, acho justo.
— E, por fim, Sr. Élvio, por fim o que vamos intitular da
carta... carta ou epístola, Sr. Élvio, me diga, carta ou epístola?
— Justo, justo,
acho justo, justo, acho justo.
— Carta, Sr. Élvio, carta é mais simples, mais direto,
carta. “A Carta Aos Vivos”, não, “Carta Aos Construtores do Amanhã”. E diremos
tudo o que eu nunca pude dizer, Sr. Élvio, o que eu sempre desejei mas nunca
pude dizer, o que o senhor nunca pensou e nunca poderia dizer se não me
conhecesse, se nós não nos uníssimos, eu com minha esperança, meu sonho, minha
ternura, o senhor com sua morte. Diremos aos verdugos e aos exploradores, Sr.
Élvio, diremos a eles que por nossa culpa, nossa total culpa, que o mundo que
eles tanto amam está a explodir-lhe na cara. Quero dizer com isto que viramos
pelo avesso o verso daquele poeta americano cujo nome esqueço. De acordo, Sr.
Élvio?
— Justo, justo, justo.
— Eu suava. O Sr Elvio foi-se afastando, os passos
firmes, engraçado como ele caminhava, durinho, como um boneco, passo a passo,
toc-toc-toc-toc, e me chateou, eu temi perdê-lo e corri para alcançá-lo,
gritando:
— Espere, Sr. Élvio, espere...
E ele não me atendia, durinho, toc-toc e toc-toc. Mas
alcancei-o e disse-lhe.
— Me esqueci de uma coisa, Sr. Élvio. Me esqueci de
perguntar-lhe se o senhor não precisa de um dinheiro qualquer, algo para o
táxi...
— Justo, acho justo.
Ele continuou durinho, os olhos no chão, jaquetão preto,
eu meti-lhe notas de mil no bolso:
— Use um táxi, Sr. Élvio.
Ele ia continuar a nadar e de novo eu o segurei.
— Esqueci algo
importante, Sr. Élvio. Lamento muito, mas não será possível morrer no perau,
porque os pescadores estão ali, sempre estão, modorrentos, e poderão atrapalhar
tudo. A morte terá de ser aquela mesma de antes, o senhor escolheu, no Lacerda,
atirando-se da torre, voando, Sr. Élvio, voando em cores até o chão na Praça
Cairu. Terei tudo preparado, Sr. Élvio, fotógrafos, cinegrafistas, tudo
preparado e o senhor, de todo o modo, deve fazer o máximo esforço para cair com
o rosto voltado para cima, olhando o céu. A nuca é que deve bater contra o
solo, apenas a nuca, Sr. Élvio, a nuca.
Já percebi tudo. Bastou-me uma conversa longa com minha
mulher e com minha sogra para perceber que os científicos me roubaram o Sr.
Élvio, roubaram meu morto, roubaram-me a oportunidade de falar à consciência do
mundo. Eu o faria através do Sr. Élvio, e roubaram-me a oportunidade, sim,
roubaram-me. Sei o que, doravante, me acontecerá. Lutarei contra a
aposentadoria com que me acenam, com todas as minhas forças lutarei. Por
enquanto, para que possa sair desse pesadelo o mais cedo possível, vou admitir
todos os absurdos que me querem impor. Admitirei até mesmo que o Sr.Élvio nunca
existiu. Admitirei que, numa noite, ao voltar para casa depois de uma dura
jornada, eu tentei matar um sujeitinho magrinho e pálido, um sujeito que usava
um jaquetão escuro e se chamava Osmundo
não sei de que. Admitirei, sim, admitirei...
Maio de 1965.
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