A Menina Ivonete

 

 

        



        

       

       O sonho

     Os olhos ardiam. Por vezes, cochilava átimos. João Carlos estava dirigindo a mais de 16 horas consecutivas. Estava perdido. Não tinha a menor noção de onde se encontrava. Mesmo amedrontado, devido ao ermo do lugar, estacionou o veículo junto à cerca de arame farpado da estreita rua de barro. Acendeu as luzes do pisca alerta, desligou o ar-condicionado e dormiu.

Sonhando, João Carlos recordou cada detalhe do sobrado da fazenda de cacau construído pelos bisavós no alto da colina. A Casa Grande, como corriqueiramente chamavam, possuía um singular projeto arquitetônico. Vários janelões enfeitados por gradis de ferro harmonizavam com o telhado de beiral saliente. Na entrada principal, pequena escada de mármore, com cinco ou seis degraus, conduzia à varanda onde grandes portas trabalhadas de cedro possibilitavam a entrada para a sala de visitas da casa ricamente decorada. — Lustres de bronze e cristais eram afixados no teto de madeira de lei. Alpendres franceses sobre as grandes janelas, em estilo colonial, compunham o ambiente. Os móveis formavam um único conjunto de diversas peças de jacarandá, couro e ornamentos de prata. — Marquesas, cômodas, poltronas e cadeiras torneadas davam um ar de requinte à decoração. Tapetes fofos e espessos combinavam com espelhos de cristal em molduras folheadas a ouro. Também de cristal húngaro, sobre consolos enegrecidos, os jarros recebiam arranjos florais. Nas paredes, nas sem janelas, os quadros grandes, com técnica, estilo e molduras do século dezoito completavam o luxo. — A imensa mesa de jantar era geralmente coberta por toalha de linho com finos bordados para acolher os aparelhos de lousa inglesa ou francesa que acompanhadas por rica prataria o lembraram dos requintados almoços quando seus pais discutiam sobre a educação européia que ele, mais tarde, receberia ou sobre o preço internacional da arroba de cacau. Perto da mesa de jantar, ficava a cristaleira que guardava fruteiras onde ele roubava, vez a vez, os quitutes preparados pela negra Firmina. — Cajus, araçás, bananas e carambolas secas e cristalizadas ou em compotas eram saboreadas ao creme de leite feitos na hora. — A cozinha ficava mais afastada e era composta por enorme fogão e forno a lenha. Uma longa mesa de pinho e um paneleiro fixado na parede local que se dependuravam os panelões de cobre, ferro e barro que ficavam a disposição para o preparo dos mais diversos pratos. — Frutos do mar, geralmente vindos de Ilhéus, legumes, verduras, aves e carnes eram ali manipuladas das mais variadas formas. João Carlos rememorou, também, o piano de calda onde estudava os clássicos desde criança.

Depois, ele se viu subindo a escada de mármore negro que ascendia em ângulos levando-o ao alto do casarão onde, de seu quarto, podia observar a secagem dos grãos do cacau sobre os tabuleiros. Lembrara-se, quase que sentindo o gosto, do fruto do cacaueiro de casca dourada ou roxa e poupa branca, doce e saboroso... Se não houvesse acordado naquele instante com o cantar de bem-te-vis e o raiar do sol morderia o ar devido à verossimilhança do sonho com a nobre infância vivida.

 

O encontro

 

João Carlos acordou ao raiar o dia. Uma poeira fina e amarronzada embaçava os vidros de seu BMW prateado. Ainda sonolento, desceu do carro após pegar pasta e escova-de-dente no porta luvas. Molhou a escova com cuspe, colocou meticulosamente um pouco da pasta e iniciou sua higiene bucal. Olhando-se pelo retrovisor lateral, enquanto espumava os dentes, notou a vinda de uma garota que pelo porte físico acreditou ter aproximadamente doze anos. Ela carregava um punhado com quatro cajus amarrados em penca e ao se aproximar do veículo, a menina, ofereceu-os a venda:

— Um real moço... E estão docinhos, docinhos... Quer comprá?

          — Não, obrigado. — Respondeu João Carlos. A garota insistiu:

— Cinqüenta... Os quatro por cinqüenta centavos...

          — Pago um real se me explicar como chego ao posto de gasolina mais próximo.

          — Por cinco... eu levo o sinhozim lá... O posto é bem longe e tenho que vortá de ônibus.

          — Você não precisa ir. Basta me indicar o caminho.

          — É ruim de dizê... Eu levo o sinhôzim.

          — Seus pais podem não gostar. É melhor...

— Moço. Vamos logo sinão fica tarde.

          — Está bem... Entre. – Concordou João Carlos.

          Ele abriu a porta do carro no lado do carona, vergou o banco dianteiro, dando espaço para a menina entrar e se sentar no banco traseiro. Cuspiu a espuma pastosa e guardou a escova-de-dente no porta-luvas. Aproveitou para apanhar um pacote de biscoitos achocolatados para o desjejum. Ela entrou, sentou-se e, quando João Carlos colocou o carro em movimento, pediu dos biscoitos. Retirando uma das bolachas recheadas, João Carlos entregou-lhe o pacote. Com um salto, a menina passou para o banco dianteiro e sem perda de tempo começou a comer dos doces gulosamente. João Carlos reclamou:

— Espere, menina. Deixe para mim também.

Ela retirou mais um dos biscoitos, devolveu o pacote quase vazio e com a boca completamente cheia balbuciou:

          — Como o sinhozim se chama?

— João Carlos. — Ele respondeu amigavelmente e completou: — mas prefiro que me chamem de Jotacê. E você... Qual é o seu nome?

          — Ivonete. — Respondeu a menina, com a boca cheia e um sorriso enfarelado.

João Carlos a observou atentamente. — O rosto arredondado com traços harmônicos chamou sua atenção. Grandes olhos, verde-claros, se destacavam graças à pele da cor de jambo maduro. Nem mesmo o louro acentuado dos cabelos lisos, que escorriam até os pequenos seios, amainava o brilho dos olhos. — Descendência Alemã.  Supôs, mentalmente, João Carlos, sobre a beleza exótica da menina:

          — O posto é muito longe, Ivonete?

Virando-se lateralmente, Ivonete pousou a mão sobre a cocha dele, lambeu os lábios limpando-os e respondeu:

— Um bucadim seu Jotaquê, mas se o sinhozim não tivé com muita pressa a gente pode brincar um pouquim. E só cobrá dez reais... — Enquanto falava, Ivonete o apalpou libidinosamente. No reflexo e no susto, ele brecou bruscamente o BMW e retirou a mão da menina, que apertava levemente seu membro, e a repreendeu:

          — O que é isso, menina! Está louca!?

Vindo novamente com a mão em direção a virilha João Carlos, ela colocou um sorriso malicioso no rosto e perguntou:

          O sinhozim não gosta? É mocinha, é?

Segurando a mão da jovem, apesar de ter ficado excitado, João Carlos a reprimiu enfático:

— Não faça isso, menina! Você é apenas uma criança. Tenho filhas bem mais velhas do que você...

Interrompendo o que seria um sermão puritano, Ivonete brincou, maliciosamente, outra vez, pois o notara excitado.

          — Ah! O sinhozim tá de pau duro... Pare de ficá tirano uma de Santo e me dêxe uma chupadinha.

Ivonete investiu novamente, agora com as duas mãos, para tentar abrir o zíper da calça de João Carlos. Ele conseguiu contê-la. Ela manteve o sorriso maroto e repetiu a proposta:

— Só uma chupadinha. Não se apoquente, sinhozim... Eu engulo a gala toda, fica tudo limpim, limpim...

— Pára!... Pare com isso! — Exaltou-se João Carlos — Vou dar os cinco reais. É só me levar até o asfalto... Você é uma criança. Como pode agir assim? Se sua família souber de um negócio desses pode querer mandar me matar.

Dêxa de bobagi, homi. Foi meu paim que me fez mulé. Faz comigo e fez com minhas irmãs. A mais véia é puta fina na Bahia e a outra se casou com um camionêro. Eu fiquei por aqui pru-mó-di-quê sempre que posso eu levo um dinherim pra casa. Já dormi com metade dos motoristas que faz rota prús lados deste trecho. A maioria deles já me acha é véia. E digo mais... O sinhozim não tá de pau duro à toa, o sinhozim doidim pra-mó-de-fudê com eu...

Mais uma vez, Ivonete segura o membro de João Carlos que, dessa vez, demora alguns instantes para retirar a mão da menina. 

—... Eu num disse? O sinhozim chega a com o cacete latejano. Dêxa de ser casquinha, homi... Só cobrá dez paus pela chupada... O sinhozim não precisa nem de pará o carro.

— Como homem não posso controlar meus instintos, mas controlo minha razão. Você é apenas uma criança e de maneira alguma deveria se prostituir... Não é pelo dinheiro, Ivonete... É que não é certo. Esse seu pai deveria ser preso pelo que fez a você e a suas irmãs. 

          — Deus que me livre seu jotaquê, meu paim é homí bom. Labuta prá de comer a nós. O sinhozim que é homi da capitá e é cheio de nove-horas no juízo. Não intende de nós. Tem de tudo no mole...

— Você deveria estar numa escola estudando e não por aí se vendendo. Se prostituindo.

Espia prus lados seu jotaquê...

— Jotacê... Ou simplesmente Jota. – Corrigiu-a João Carlos

— Intão, seu Jota... O que o sinhozim vê... Nada! Só a rua de barro e a terra seca em vorta.  O sinhozim vê um verdim? Um verdim sequer? Não! Só caatinga, só mato seco. Paim sai de manhãzim e só chega à noitinha. Fica o dia labutando com a enxada no açude seco. Hoje eu fui com paim. E lá, só tinha estes caju pru-mó-di-que a árvore chupô um restím d’água de debaixo do chão na bêra da poça de lama. Paim trabáia o dia todo de chupa lama. No finarzim, de tardinha, ele vorta com um tonezim d’água, pra nós e pras cabras.  Quando dá sorte, traz um calango, um papa-defuntos, um teiú ou um sariguê, pru-mó-di nós cumê cum palma.

          — O que vem a ser chupa-lama? Nunca ouvir falar.

— Paim pega a enxada e cava, e iscava, e cavunca até arrumar o barro moiado. Aí, ele bota no pano e torce, torce, torce... Aí, vai pingando a gotinha na lata, aí, paim bota no barriuzim. Mas ele tem que ir de manhanzim prá pegar a orvalhada. Quando o sol sai, seca. Seca tudo. Aí paim vai pra frente de trabáiu na fazenda do prefeito prá ganhá uma cesta básica e mais uns reais. Adipois ele vorta com o barriuzim d’água até incasa. As vez, eu vou até o posto. Vô de ônibus e vorto de boleia, na carona. Quando trepo gostoso ganho uns trocados. Compro farinha, rapadura e guardo o de vortá prá lá incasa. Assim a gente vai vivendo como Deus qué...

— Está bem. Vou ajudá-los. Quando chegarmos ao posto de gasolina ligarei para minha empresa e direi onde estou. Depois minimizarei o problema de sua família. Mas, se você estiver mentindo para mim eu a levo até o Juizado de Menores e é a polícia quem irá dar uma solução. Está certo?

          Homi!, só Deus quí pode jeito na gente. E o sinhozim não é Deus. É!?

          — Não blasfeme, menina. Eu vou ajudar a seus pais, se quiser, posso levá-la para casa e adotá-la. Posso colocá-la para estudar, posso alimentá-la e vesti-la...

Não sinhô! Não vô prá Bahia não sinhô! Mãe pricisa de eu... Tem a Dória, tem Julana e tem o bacurí chamado Tônho. Todos depende de eu. Mãe tem aquelas veia grossa que dói, dói muito. Ela qui chega a chorá. E paim prícisa se aliviá em eu. Mãe não guenta mais. Eu vô decê aquí, seu Jotaquê. Pára aí...

Ivonete ficara muito nervosa com a idéia de ir morar com João Carlos. Ele tenta acalmá-la.

— Calma! Se você quiser ficar aqui, você fica. Foi apenas uma idéia e nada mais. Vou ver, então, o que posso fazer por vocês, quero que fique sossegada. Eu só quero ajudá-la...

 A viagem
                                                 A família                               
De volta ao vilarejo.

 

João Carlos e Ivonete viajaram por aproximadamente vinte quilômetros, destes, quinze em estrada de barro. Ao chegarem ao posto de gasolina que ficava próximo a um pequeno vilarejo eles pararam para completarem o desjejum.  João Carlos pediu dois pedaços de bolo de fubá, uma média e um refrigerante. Enquanto comia, João Carlos notou que Ivonete enfiara disfarçadamente seu pedaço do bolo no bolso do vestido roto e bebeu apenas o refrigerante enquanto andava de mesa em mesa mendigando alguns trocados. Ao saírem do posto, partiram para o vilarejo. Ao chegarem, João Carlos se hospedou na única pensão que existia na vila para tomar algumas providências relacionadas ao seu trabalho, no único telefone disponível do vilarejo.

Resolvidas às questões de João Carlos, eles foram a um armazém na praça central onde compraria mantimentos para Ivonete e a família. Ao entrarem no estabelecimento o vendedor fez pilhéria levando João Carlos a irritação.

          — Freguês novo, em piranha? — Gracejou o balconista.

          — Respeite a menina, rapaz. Não tem educação?

          — Chí! Moço. Essa aí é uma putinha ladrona! Vai lhe limpar e lhe passar uma doença...

— Me respeite, rapaz! Vim aqui para comprar, não para ser destratado e muito menos para ouvir conselhos imbecis.

         Com desdém o balconista explica:

— Só quis ajudar ao doutor. O senhor é quem sabe. Aqui é o senhor quem manda.

— Veja-me aquela peça de charque, por favor.

          — O doutor quer quantos quilos?

          — Toda a peça.

Levantando a manta de carne seca o balconista tentou adivinhar,

— Têm mais de sete quilos.

— É mintira dele, Jotaquê. Ele qué robá o Sinhozim. — Intercedeu Ivonete em defesa de seu benfeitor.

          — Saia daqui sua nigrinha ou te dou um cacete. — Ameaçou-a o balconista.

          — Parem! Parem os dois já. Agora! — João Carlos foi ríspido ao falar — Tenho muito a fazer... Rapaz, por favor, traga-me a peça de charque, uma saca de feijão, uma saca de arroz, dez latas de óleo e...

       O balconista, interrompendo novamente a João Carlos, explica e pergunta:

       — Só têm sete, sete latas de óleo... Que mal pergunte, o senhor vai abrir um restaurante?

       João Carlos evita a tentativa de conversa mentindo.

— Exatamente! Pegue as sete latas... Água! Quero água mineral. Cinco garrafões com os vasilhames... Ou melhor, dez...

— Água mineral com as garrafas o senhor só vai comprar no posto de gasolina. — Avisou o balconista.

          — Rapadura, — pediu Ivonete, — uma rapadura e farinha...

          — Pegue todas as rapaduras que estão naquela prateleira e apanhe também uma saca de farinha... Quanto pesa a saca?

— Sessenta quilos a saca. Mas nós vendemos por quilo. Sessenta reais.

          — Seu Jota... Ele robano... Um quilo é sessenta centavos... Vezes sessenta é... Dá trinta e seis reais. Ladrão! — Gritou Ivonete com o balconista ameaçando-o — Eu chamo seu pai, seu ladrão... — João Carlos pede confiança.

— Calma Ivonete, deixe-me resolver — João Carlos tomara as rédeas da situação como faz costumeiramente em sua empresa. — Vá para o carro, menina. Vejamos... Óleo, farinha, feijão, arroz, rapaduras...Ok! Ponha aquela tira de mortadela também. De carne verde ponha cinco quilos. Coloque um pacote de sal dos grandes e ponha tudo dentro da mala carro...

Antes de arrumar o pedido o balconista avisa:

       — Moço. Se for cheque avise logo. Nós não aceitamos cheques não.

       — Pago em dinheiro. Quanto foi tudo?

Ivonete desobedecendo à ordem de João Carlos encostou-se ao balcão e a cada tentativa de desvio de valor ela o alertava... Acompanhando o balconista, Ivonete pegou o pedaço de papel de embrulho onde estavam anotadas as compras e foi ao carro conferir um a um dos itens comprados e ao retornar checou as contas eliminando qualquer tentativa de desvio. Ao final, assustou-se com o montante da nota.

— Ficou muito caro, sinhozim. Duzentos e cinqüenta reais é mais do que meu paim ganha no ano.

          — Tudo bem menina, fique tranqüila. Isto para mim é troco.

          Esnobando seu poder aquisitivo, João Carlos sacou o dinheiro da carteira e contou cédula a cédula os R$ 2.000,00 que portava em espécie, deles retirou R$ 300,00 e pagou a conta impressionando ao balconista que saiu apressado para trocar uma das cédulas de R$ 100,00 e retornar com o troco após algum tempo. Ao saírem o balconista não se privou de alfinetar a menina e seu benfeitor:

          — Arranjou um otário rico... Né, putinha?

          Ivonete, virando-se de frente para o balconista bateu a mão em seu órgão genital e exclamou:

          Ocê aquí, óh!. Nunca mais.

          E deu um sorriso, e entrou no automóvel, e de seus olhos irradiavam felicidade. João Carlos se dirigiu ao posto de gasolina onde comprou os dez garrafões de água mineral com os respectivos vasilhames plásticos, e devagar, muito devagar devido ao peso no veículo, levaria as compras até a casa da nova amiga.

 

 

A viagem fora lenta e difícil, o peso no carro fazia com que o assoalho, por vezes, tocasse o chão. Já era final de tarde quando chegaram à porta de um pequeno casebre feito de taipa e isolado pela vegetação espinhosa da caatinga. A frente do barraco, como se já os esperassem, estavam a mãe e os irmãos de Ivonete.

Três crianças minguadas deixavam visíveis as barrigas inchadas. Duas meninotas vestiam apenas calcinhas encardidas e rotas e o caçula estava despido. As meninas se esconderam detrás da mãe que carregava o menor montado ao lado em sua anca. Ele a cintava com as pernas finas qual gravetos e se colocava como se montasse num cavalo. Deixava escorrer do nariz um risco de catarro amarelado que descia até a boca, a cena incomodava João Carlos que o olhou com nojo. Os olhos esbugalhados e muito azuis das crianças brilharam ainda mais com a chegada da irmã. A mãe era uma mulata de cadeiras largas, estatura baixa e magra, muito magra. Porém devera ter sido bela quando jovem uma vez que o rosto tinha traços finos e belos como os da filha, além de mostrar um equilíbrio harmônico entre eles. Todas as crianças correram em direção a Ivonete quando ela desembarcou do veículo para beijá-la e abraçá-la. Sempre carinhosa, ela retirou do bolço o pedaço do bolo e, ao destribui-los em nacos, acarinhou um a um dos irmãos, apanhando o caçula para colocá-lo na mesma posição em que a mãe anteriormente carregava. Enquanto João Carlos retirava do carro os vasilhames plásticos com a água mineral e os mantimentos, mãe e filha conversavam baixinho. A mãe, olhando para as compras, com o costado da mão esquerda limpava as lágrimas que escorriam pelo rosto, surrado, devido às privações vividas. Uma pequenina cachorra que estava junto à beira de um cercado de cabras, como se saísse de um transe, levantou-se e veio latindo e correndo em direção a João Carlos, mas Ivonete a espantou gritando:

          Quéta!, Xuxa. — E foi obedecida de imediato pela cadela que retornou a sombra do mourão abanando o rabo até se deitar. Do lado da cerca havia uma plantação de palmas, onde cabras magras se alimentavam esticando os pescoços para fora do cercado. Após terminar de colocar as opulentas compras no chão, junto ao carro, João Carlos perguntou:

          — Vocês conseguem levar as coisas para dentro de casa?

Com um aceno de cabeça a mãe de Ivonete respondeu afirmativamente e agradeceu ao mimo do fundo da alma:

          — Deus te pague seu homi. — Novamente foi rodeada pelas crianças que se entrelaçavam nas pernas repletas de varizes.

— Não por isso, senhora — Respondeu João Carlos antes de entrar no carro e chamar Ivonete: — Vamos, menina. Leve-me pelo menos até o asfalto. Tenho medo de me perder novamente.

Ivonete entrou no carro, buliu em alguns botões do painel, deu um abraço e um beijo no rosto João Carlos e sussurrou junto do ouvido dele:

— Se o sinhozim qué, inda dá tempo e só vô cobrá dois real. Se qué que eu druma na pensão com o sinhô, só cobro cinco. Mas o furico não dô: Deus fez a boceta pra dá,  mas o cu pra cagá.

João Carlos sorriu. Ivonete pousou a mão novamente sobre a coxa direita de João Carlos e soltou uma gostosa gargalhada.

Quando chegaram à beira da rodovia asfaltada, João Carlos deixou Ivonete saltar do carro e enfiou por entre os pequenos e duros seios da menina uma cédula de cem reais. Ela agradeceu extasiada e se foi. João Carlos se sentia exausto e buscou repouso na pousada do vilarejo. Sentia, também, um estranho contentamento.

 

Anoitecia quando João Carlos chegou à pousada. Estava estafado e logo procurou tomar um banho frio. O que era impossível já que a água estava na temperatura ambiente, ou seja, quente. João Carlos trocou de roupa e caminhou até a sala de refeições. Jantou espantando moscas e se recolheu para uma merecida noite de descanso. Mas, o calor estava infernal e a cama logo ficou totalmente ensopada. Ele tentou, então, acomodar-se numa rede, estrategicamente colocada para este fim. A tentativa não surtiu o efeito desejado. Sem ter nenhuma outra opção, ele trocou novamente de roupa e saiu em busca de um bar onde pudesse beber, pelo menos, uma cerveja gelada. Resolveu ir a pé devido à pequena distancia da pousada ao bar do outro lado da praça, próximo ao armazém onde fizera compras.

Jovens desfilavam em torno da praça. Casais sentados na escadaria de uma Capelinha namoravam. A lua minguante se mantinha apagada deixando livre o céu para exibir seu manto de estrelas. João Carlos caminhou até o bar, parecia ser, além da pensão, a única casa a possuir energia elétrica, o que constataria ao chegar. Enquanto atravessava a praça, ouviu passos, e, buscando atender a sua curiosidade, olhou para trás. Apesar da semi-escuridão, João Carlos notou um homem de pequeno porte, alourado, com roupa bastante surrada, que parecia segui-lo. Apressou os passos até chegar ao botequim. Acomodou-se logo na primeira mesa. O bar estava vazio, mesmo assim, João Carlos se sentiu aliviado e seguro. Logo ao sentar, foi atendido por um homem gordo, de bigode farto, e com um largo sorriso amarelo.

          — O amigo está de passagem ou veio a negócio? — Perguntou-lhe o barman enquanto a saliva saltava da boca.

— Um guarda-chuva...

— O quê? Homem?

— Nada de importante, é brincadeira minha. Quero uma cerveja se estiver gelada. Estou de passagem, na verdade, há essa hora, eu já deveria ter chegado a Salvador. Mas, ontem à noite entrei por uma estrada que começava asfaltada, depois se tornou cascalhada, e por fim, era puro barro. Encostei o carro e peguei no sono. Ao acordar encontrei uma menina de uns treze ou quatorze anos e fui tentar ajudá-la. Acredito que consegui minimizar o sofrimento dela e da família. Uma meninota linda, mas muito assanhada... Por isso estou exausto, quero apenas me sentar aqui nesta pouca brisa e beber uma cerveja muito, muito gelada.

          -- Sei. – respondeu o balconista -- A cidade toda já sabe. Mas ela não é tão garotinha assim não. Ela é mulher da vida, e se o senhor não sabe, já tem mais de dezesseis anos. Ela é filha e mulher do pai. Dizem na cidade que o excomungado vira lobisomem nas noites de lua. Contam que ela atrai forasteiros que nem o senhor. À noite, ela os leva até a beira do mato e faz sexo com eles. Aí fica o cheiro dela nos forasteiros... Então o bicho vai e os pega desprotegidos.  Não sobra nem ossada para contar história. O senhor sabe, né? Animal também tem ciúmes...

          — Não acredito que eu corra perigo. Não fiz sexo com ela.  Só fiz algumas compras para ajudá-la. Além do mais, os lobisomens só aparecem, segundo a lenda,  em noite de lua cheia e hoje não é noite de lua, nem noite de lobisomens. Mesmo assim, obrigado pelo aviso. Você tem cerveja gelada?

       — Só “Primus”, mas está tinindo. Quando o senhor entrou na pousada liguei logo meu gerador.

       — Como você sabia que eu viria?

       — Gente de fora, que não está acostumado com a temperatura daqui, sempre vem matar a sede antes de ir para pousada. A cerveja de lá é quente, e o tira-gosto é ruim. Além do mais, com esse calorão, quem é que consegue dormir sem um aperitivo?

          — É verdade... Quer dizer que Ivonete já têm dezesseis anos. Com aquele rosto de menina engana qualquer um. Ela é até bonita. Maltratada, mas bonita de rosto, o corpo é magro, corpo de criança, mas também não é feio.

Sem interromper a conversa, o barman vai e apanha a cerveja. Retorna com ela na mão, senta-se ao lado de João Carlos, e sem pedir permissão serve-se puxando conversa.

          — Vou tomar esse copo com o senhor. Esta aqui é por conta da casa.

          — Não é necessário, posso pagá-la. Fique à vontade.

          — Obrigado. — Dando um gole na cerveja o barman conversa. — O Senhor precisava ver... Belas eram as irmãs dela. Putas, também, desde meninas. Gostosas, muito gostosas. Eu mesmo comi as três. A mais velha, o pai vendeu para um caminhoneiro. Dizem que eles se casaram. Uma vez esse caminhoneiro me confidenciou que tirou a sorte grande. Disse-me aqui mesmo, em meu bar, que ela é a mais honesta das mulheres e que o tratava como a um Rei. Disse também, que na cidade dele, ela é chamada de “madame”. Ela mudou de nome, o senhor sabe? Puta quando se casa muda o nome. Ela era mulher do pai como as outras, chamava-se Florinda, a outra, mais nova, chamava Getrusdes. Getrurdes foi parar num brega lá em Salvador, brega de grânfino, tem “streip tizi” e as porras. No Natal Getrurdes esteve por aqui. Quase que eu não reconhecia de tão emperiquitada que estava. Era um fodão... Era gostosona... Bucetinha de chupeta. Quando o senhor chegar em Salvador vai lá na Pituba. A boate que ela trabalha fica quase na divisa da Pituba com Amaralina. Chegando lá, procure por Sofia Loren, diga a ela que fui eu quem mandou. Garanto que ela vai lhe dar um bom desconto. O nome dela é Getrusdes, mas o senhor sabe como é... Puta também muda de nome...Tem que botar nome de artista, essas coisas... O senhor sabe...

          — Sofia Loren? Se eu não estou enganado esse é o nome de uma grande atriz italiana que fez muito sucesso em Hollywood. Foi considerada uma das mulheres mais sensuais de todo o cinema Norte Americano...

          — Mas, essa Sofia Loren de lá do estrangeiro tem uma bocetinha de chupeta...  Tem? Mesmo que tenha, não é igual à de Getrusdes. O amigo já comeu uma bocetinha de chupeta?

          — Talvez eu já tenha comido? Não me lembro.

          — Não! O amigo não comeu não! Se o amigo tivesse comido nunca ia de esquecer. Ainda mais a chupeta verdadeira. Se o amigo não sabe, existem dois tipos de boceta chupeta. A chupeta falsa, que só lateja na rola, e a chupeta verdadeira, essa mastiga o cacete e puxa pra dentro. Como diz aquela música: “Faz o homi gemer sem senti dor...”.

          — Voltando a Sofia Loren, — desconversou João Carlos, — a do cinema Norte Americano, só perdia em fama para Marilyn Monrou.

João Carlos tentava desviar o rumo da conversa, havia se afeiçoado à menina e a vulgarização dela e da família, mesmo que verdadeira, constrangia-o. Contudo o barman insistia no assunto.

       — Dessa eu já ouvi falar... — Rebateu o barman. — Uma loura dos peitões. Mas ela só é boa pra gringo! Falta bunda! Minha Sofia Loren tem mais de metro e meio de bunda, puxou à mãe. Comi a véia também. Faz um tempão. Foi antes dela se casar com o lobisomem.  Era um pitéu e com uma bunda pra dá de pau. As filhas mais velhas puxaram a ela. Mas a mãe não é chupeta não, só Gertrudes que é. E a que o amigo comeu e quer esconder, por cavalheirismo, é mirradinha, não tem bunda, já comi. Chamam ela de Ivonete. Essa puxou ao pai, o lobisomem. Fode desde os dez anos de idade. Aos dez, já agüentava rindo o que o amigo não agüentaria chorando...

       João manteve silêncio, pois não conseguia admitir que tal violência, feita contra uma criança, fosse tratada como algo normal. O barman pareceu finalmente entender o desconforto de João Carlos e mudou o rumo da conversa.

       —...O amigo não vai beliscar nada? Espera! Eu vou esquentar umas moelinhas no capricho pra você. Se não gostar, não paga. Me dê só dois minutinhos...

       Apesar de descontente, devido à narrativa maldosa do barman, o calor falou mais alto e João Carlos rompeu o siso e o silêncio:

          — Quando vier me traga mais uma cerveja, e se possível, um digestivo. Um licor de erva doce ou de gengibre. O álcool vai me ajudar a dormir.

          — O licor de gengibre daqui é melhor que qualquer um que o amigo já tenha experimentado. Volto já.

Ao entrar no bar, o barman desapareceu. João Carlos voltou seu olhar para rua. Notou que o homem alourado que o seguira estava sentado de cócoras na beira do meio-fio da praça, observando-o. João Carlos resolveu encará-lo. O homem disfarçou desviando o olhar. Desconfiado, João Carlos colocou uma garrafa de cerveja vazia ao alcance da mão. Em pensamento, planejou levar uma garrafa cheia para quando retornasse à estalagem a fim de servi-lo como arma. Por segurança, João Carlos mudou de posição, encostou a cadeira de costas para a parede. Afastou a mesa, queria ganhar espaço e encarar a figura sombria que o seguira. O barman retornava quando perguntou do balcão:

— Vai de gengibre ou de erva doce? Têm os dois.

          — Traga-me o gengibre, é mais refrescante. — Respondeu João Carlos ao vira-se novamente para observar o desconhecido, ele havia sumido como num passe de mágica. Seu companheiro de cerveja e dono do bar retornou com o prato. Nele moelas de galinha ao molho pardo e junto, na bandeja, uma exagerada dose de licor de gengibre além da cerveja. Ao pousar o serviço na mesa o barman perguntou:

         Conte-me, amigo. Qual é mesmo sua graça?

       — Jotacê. E o nome do amigo?

       — Julião Barriga, para os íntimos. Mas me diga, no que é que o amigo trabalha?

       — Lido com comércio internacional... Importações e exportações.

       — Ah! Então o amigo é comerciante como eu. Já ouvi falar. Somos da segunda mais antiga das profissões. A mais antiga é a de puta. Depois é a nossa, a dos comerciantes. Além deste bar, sou o dono da quitanda. Trabalho na quitanda de dia, e no bar à noite.

          — É? Eu estive em sua quitanda. Fiz umas compras para ajudar a menina, coisa pouca, mas de relevância para aquela família paupérrima... Deixe pra lá... Pude observar que o amigo gosta de trabalhar. Isto é bom. Dizem que os baianos são preguiçosos e só se importam com festas.  O que não é de todo uma mentira.

          — Isso mesmo, seu Jotacê. Aqui tem São João, São Pedro, Festa do Divino, tem a Micarêta e o Natal. É festa pra dá de pau... E é bom para os negócios... O amigo é do sudeste ou do sul?

          — Nem um, nem outro. Sou soteropolitano mesmo...

          João Carlos experimentou as moelas e o licor de gengibre, o gosto agridoces do licor, acrescido ao sabor picante das moelas, foram agradáveis ao paladar. Ainda mastigando uma das moelas João Carlos retomou o assunto:

          — Nasci em Salvador, apesar de ter sido criado numa fazenda em Ilhéus, e é onde pretendo morrer.

          — O amigo não deve falar em morte não, esconjura, dá azar! O amigo quer outra cervejinha e outro gengibre?

       — Pode trazer mais uma cerveja de saidêira. Está ficando tarde e a pousada já está para fechar. Parabéns pelas moelas, estão realmente deliciosas. E o licor de gengibre também estava ótimo.

          — Vou esquentar mais uma porção para o amigo.

          — Não é preciso, a pousada...

          — Não se preocupe não, é só bater na porta que dona Dolores abre.

          — Mas eu não quero incomodá-la...

          — Olha lá... já fechou... Vou rapidinho esquentar outra porção de moelas.

          — Esta bem, antes, traga-me a cerveja e outro licor de gengibre.

          — Como o patrão desejar. Saindo uma cerveja e um gengibre...

João Carlos ficou no bar tomando “saideiras” até altas horas da noite, sentindo-se meio embriagado, pagou a conta e esperou que o barman fechasse as portas. Quando se retirava em direção à pousada, sentiu o cano gelado de uma arma encostar em sua nuca.

          — Parado aí, seu moço. Não se vire! Vamos andando devagar até os fundos da Capela. Se gritar morre!

Milhares de pensamentos reviravam a mente de João Carlos. Entorpecido pelo álcool, ele andava oscilando, lentamente, quase sem sentir o chão. Pensou até em reagir, mas teve medo. Ao chegarem atrás da Capela, João Carlos foi empurrado contra a parede, tomou uma coronhada na cabeça e desmaiou.

Ao acordar na manhã seguinte, com um enorme e dolorido galo na cabeça, encontrou ao seu lado dois corpos dilacerados. O do jovem que o atendera na quitanda, e o do pai, o barman do boteco que ele estivera na noite anterior. Todos os dois muito mutilados como se tivessem sido atacados por um enorme animal. Quanto a suas coisas? Estavam intactas, não sumira nem um centavo sequer.

 

Na delegacia.

 

João Carlos contou tudo ao delegado, sem por nem tirar. No mesmo dia, tentou junto ao delegado localizar a casa de Ivonete. Apesar dos esforços não conseguiram. Foram ao posto de gasolina e lá ninguém a conhecia ou se lembrava de sua presença. Telefonaram para Salvador na tentativa de encontrarem Gertrudes, a tal Sofia Lorem. Os funcionários da empresa de João Carlos juntos aos policiais da capital baiana correram todos os prostíbulos da cidade e não existia tal pessoa. As vãs tentativas deixaram João Carlos preocupado, temia ficar preso naquele lugarejo. 

       — Meu advogado, quando chega? —Perguntou João Carlos ao delegado.

       — Já está vindo para liberá-lo, já saiu de Salvador, fique tranqüilo. Sabemos que o senhor não conseguiria fazer aquilo. Os corpos foram dilacerados por algum instrumento cortante com lâminas grossas. Algo parecido com garras e dentes muito afiados. Só não defini o caso como ataque de animais devido aos cajus e ao fato de haver uma arma. A arma estava na mão do filho de Julião Barriga totalmente descarregada.  Ele esvaziou a arma em alguém ou em alguma coisa. Encontramos os cartuchos detonados no tambor, os chumbos sumiram e não há mancha de sangue. Além disso, achamos marcas de grandes pegadas no chão que fazia trilha até a mata. Marcas parecidas com as de um grande animal. Porém, há muitos anos não passa circo por essas bandas. No entanto, o que mais me intrigou foram mesmo os cajus...   

       — Que cajus, delegado?

       — Quatro cajus. Dois cajus por cadáver, enfiado na boca das vítimas?

 

                                                                                          

 

Ricardo Matos,

Costa Azul, 1995.                         

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Carta aberta aos novos empresários brasileiro. Algoritmização

Rosa tem febre demais