Xaréu

 

 

            Quando criança costumava, nas férias, acordar e ir à praia para assistir arrastões. Deslumbrava-me ver os pescadores invadirem as águas do mar e de lá buscarem os peixes que eu saboreava de diversas maneiras, preferencialmente, na moqueca feita por Maria. Mulher humilde, de nenhuma letra, mas muito culta nos sabores baianos. E numa dessas vezes, fui notado e convidado por um jovem pescador de nome Pepira a acompanhá-lo. É essa minha história.

Era cedo para o dia. Cedo também para mim na busca de uma vida de obrigações. Mas eu andava ao nascer do astro rei, prelúdio da manhã, com Pepira beirando o mar e observando a maré. Naquele dia, em especial, o sol demoraria a sair devido ao cinza escuro que encobriu a linha imaginária no vergar do oceano...

— Olha, Zé! Ta vendo!? Lá no fundo! Não está vendo o encrespado da água!? É xaréu! Cardume grande vindo pra beira. Vou buscar meu povo. Fique de olho. Olha lá, Zé! — Pepira, eufórico, repetiu a sentença apontando o dedo para o cardume de peixes:

            — Lá por baixo das gaivotas, não está vendo!? É tainha e xaréu. Vou correndo. Prenda os olhos nas gaivotas ou no encrespado da água e não perca de vista... Volto já.

Ele saiu numa carreira só. Eu fiquei ali espiando sem ver, mas fingia avistar, o cardume crispando na flor d’água. — Estava frio. Não o frio seco da serra de Vitória da Conquista, onde eu morava. Era um frio diferente. Era um frio úmido de vento cortante e de fazer tremer o queixo. Era um frio salitrado.   Pepira corria para, em meio às cabanas de taipa, gritar:

— Xaréu!... Xaréu!

E eu o olhei berrando e correndo em disparada e, novamente, voltei meus olhos para nada ver na flor d’água a não ser o azul.

Atendiam aos gritos homens fortes, velhos e moços. Corriam em direção às canoas na praia do "Chega Nego". Toros, feitos com troncos de bananeiras, eram subpostos como rodas e a revezá-los sob os barcos, os homens empurravam as embarcações que escorriam sobre os troncos em direção ao mar até atingirem a linha d’água. As ondas da maré altas elevavam a proa das canoas em direção ao céu onde estouravam fazendo surgir da espuma expandida belos arco-íris. As mesmas pessoas que empurravam as frágeis embarcações entravam totalmente na água e se dependuravam nos bicos e nas laterais impedindo-as que virassem.

Já de pé sobre o barco maior, imponente, Pepira gritou:

— Vem Zé!, monta logo, corre! Vem! Eu ajudo...

O medo que se apossara de mim foi espantado pelos gritos alegres dele. E eu, menino de rio, tremendo de frio, pulei as espumas das ondas arrebentadas enquanto corria até a popa da canoa, oposta a proa, de onde Pepira continuava a reger os bravos pescadores:

— Ajudem  ele! O menino é nadador. Ajudem-no a subir!

Ainda me lembro das mãos ásperas de um galego forte que me segurou pelas coxas finas e me jogou para dentro da canoa maior. O solavanco levou-me a cair sobre uma macia rede de náilon.

A canoa que eu estava ia à frente com Pepira vogando e cantando no ritmo das remadas firmes. A chuva prevista iniciou mansa e foi ganhando força. E engrossava os pingos dando maior beleza ao tapete azul do mar na medida em que encrespava ainda mais os respingos provocados pelos peixes que agora eu podia ver nitidamente. O cardume serpenteava indo e voltando. Alguns peixes pulavam solitários, outros, invadiam as embarcações. Quando chegou o momento de jogar a rede, Pepira gritou:

— Arria! Arria! — Os dentes brancos dele me mostravam a alegria dos que vão buscar a vida sem medos, onde o trabalho é só gozo.

A bracejar, a tresmalhos era solta pontilhando o mar com bóias brancas, de isopor, enquanto a chumbada, pesada, afundava sua parte de vez. E assim era feito o cerco em arco. Os canoeiros começavam, então, a bater os remos na água com vigor.

Pepira atirou-se ao mar da proa da canoa e foi nadando e gritando:

— Vem Zé! Ajuda a cercar!

Seguindo seus comandos eu me joguei atrás dele:

— Espanta pra rede! — ele gritava — Vai, Zé! Bata na água! Espanta pra rede...

Um vulto escuro se desviava dos sopapos dados por mim na flor d’água, enquanto nadando, eu fui cercando os peixes onde a trama de náilons não havia chegado. Quando me cansava, com o corpo gelado e dolorido, apoiava-me numa embarcação para que outras gentes se atirassem em minha substituição.

Só Pepira não buscava descanso. Só Pepira não sentia frio. Só Pepira não tinha medo dos peixes acertando seu corpo. E sorrindo gritava me incentivando:

— Venha, Zé. Está gostosa a água... 

E lá ia eu de novo. Engolindo o cansaço para dar tapas e mais tapas na água e sentir os toques de peixes e mais peixes em fuga no pavor dos caçados. Mesmo exausto, busquei forças e, com os lábios arroxeados e os dentes batendo, continuei nadando e dando novos tabefes para espantar os peixes de volta para rede até chegar à beira da praia, onde, quase sem forças, pude buscar outro curto descanso. Mas, atrás de mim, já vinha Pepira gritando e trazendo a corda da rede de arrasto arrumando os homens e elevando o grito:

— Vem, Zé! Não afrouxa não! Vem que a corda é dura e um "homem" só faz falta.

Os homens do arrastão se perfilavam para puxar o cordão grosso de sisal. Calejavam ainda mais as mãos ao arrancarem delas carnes mortas que ensebavam as tramas.

E eu lá, entre eles, sangrando as minhas mãos finas de menino e ouvindo Pepira cantar:

— Arabô aiô Iemanjá! Puxa a corda nego que tem peixe bom / puxa nego / puxa nego / que é benção de Iemanjá... 

Era um consoar de arrepiar os cabelos e de aliviar sofrimentos. Eram mais de trinta vozes, a cantar em coro, num gemer só: Rum / rum / rum // rum / rum / rum. — Era um som nasalado e de esplendorosa beleza. — Os corpos sincronizados oscilavam num vai e vem de meneio, suplantando as dores, puxando a tresmalho como em um cabo de guerra, até os peixes darem na areia e brilharem prateados ao se debaterem na areia.

Enquanto alguns dos homens catavam os peixes, Pepira brincava de matar caçonetes intrusos a pauladas. O sangue que escorria deles avermelhava a espuma que lambia a areia úmida.

Os pescados eram amontoados no centro da praia e os homens formavam um circulo em torno esperando a partilha. 

Pepira se colocou no centro e ao lado do amontoado de peixes. Eu fiquei no círculo enquanto a chuva, grossa, tirava-me o sal da pele. Um dos homens que chegou depois tentou me espantar. Pepira gritou:

— Deixa o menino! É nadador! É de coragem! E você negão? Ta molhado é de chuva! Nem suou! Mostra as mãos... Amostra!... Saia você, descarado! Mão branca!

O suor espantou-me o frio, o sangue em minhas mãos o medo. E eu ganhei o respeito de todos. O respeito de quem foi à vida com coragem de enfrentar seus temores... E ganhei meu quinhão de peixe. E ganhei o sorriso de Pepira, como um troféu, ao esfregar a mão rude e fétida sobre meus cabelos lisos. Mesmo sendo cedo para o dia. Mesmo, que para mim, ainda fosse cedo para uma vida de obrigações.

Alguns anos se passaram até que eu pudesse voltar à praia do "Chega Nego," em Salvador. Fui com meu filho. Saímos cedo para o dia. Queria que ele visse um cardume de xaréus crispando o mar. Mas não havia mais xaréus. Como não havia mais vila de pescadores com suas casas de taipa. Como não havia mais canoas para romper a crista das ondas que, ao estourarem, faziam formar lindos arco-íris no ar. Como não havia mais nem mesmo as redes estacadas e esticadas para os silenciosos remendos nos buracos abertos por caçonetes intrusos. — “Momento mágico de silêncio e prece." — Nem mesmo Pepira estava lá para cantar seus jongos e dar lições de coragem. Lições que um menino com frio e com medo aprendeu. Lições de uma coragem de alegria necessária, uma coragem de suor derramado para buscar o fruto a ser dividido por quem se molhou e sangrou as mãos...

E tudo isso acabou em nome de um progresso descompromissado com a natureza, um progresso burro, bruto, enriquecedor para uns poucos, mas de alto custo para todos os humildes que, em nome dele, foram marginalizados.

 

 

Ricardo Matos

1997 – Costa Azul

Salvador – Bahia.    


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