“O discurso de Satã"
O que vou postar, creio eu, deveria ser lido por todos que se propõem a ser “influencer”, “produtor de conteúdo digital”, “estudante de jornalismo” e/ou mesmo jornalistas.
Para mim o Discurso de Satã é um dos mais belos textos “proféticos” que já li.
Um pouco do Autor.
Friedrich Maximilian Klinger (1752 – 1831) descendia de uma família pobre. Goethe possibilitou-lhe o estudo. Pertenceu durante algum tempo a um grupo de teatro, dedicou-se depois a carreira militar, tornando-se, finalmente, general na Rússia. Suas principais obras dramáticas pertencem ao Sturm und Drahg. Mais tarde, entre 1790 e 1800, escreveu seus romances filosoficamente fundamentados, que tomam frente ao mundo uma posição essencialmente crítica, se não cética. O Discurso de Satã foi extraído de seu romance A Vida de Fausto, seus Feitos e sua Descida ao Inferno (1791).
A literatura ocupou-se com o tema fáustico desde a Idade Média. Fausto, por sua ambição de poder e ânsia de saber, faz um pacto com o diabo. No romance de Klinger, ele aparece ainda como inventor da imprensa. A ação do romance, que não segue um esquema rígido e na qual Satã mostra o mundo a Fausto, contém uma crítica à sociedade amoral, que se corrompe justamente por seu alto grau de civilização e cultura. Aqui, pode-se notar claramente a influência do filósofo francês Rousseau. Com seu discurso, Satã dá as boas-vindas a Fausto no inferno. Klinger esboça uma visão verdadeiramente diabólica da Idade Moderna, distorcida, pela visão de Satã, mas que nem por isso deixa de ser fundamentação histórica.
“O discurso de Satã –
Friedrich Maximilian Klinger
Príncipes poderosos, espíritos imortais, sêde bem-vindos! A volúpia me abrasa quando lanço meu olhar sobre vós, incontáveis heróis! Ainda somos aquilo que éramos outrora, ao despertarmos pela primeira vez neste inferno, ao reunirmo-nos aqui pela primeira vez. Só aqui há unidade de sentimento, só aqui todos trabalham por um único ideal. Quem impera sobre vós pode esquecer facilmente o monótono brilho do céu. Eu confesso que muito sofremos e sofremos ainda, pois o exercício de nossas forças está limitado por Aquele que temer-nos mais do que nós a Ele; mas, no sentimento de vingança que provocamos nos filhos do pó, seus fracos preferidos, ao verificarem que seus ideais são arruinados pela sua demência e seus vícios, reside o lenitivo para esse sofrimento. Vivas a todos aqueles que estão inflamados por esse pensamento!
Eis os motivos da festa que hoje pretendo realizar convosco: Fausto, um atrevido mortal, que como vós contesta o Eterno e, pela força de seu espírito, quer tornar-se digno de morar conosco no Inferno, descobriu a arte de multiplicar com facilidade milhares e milhares de vezes os livros, esse perigoso entretenimento dos homens, propagadores da demência, dos enganos, da mentira e do terror, fonte do orgulho e mãe da trágica dúvida. Até aqui, devido ao seu elevado preço, eles haviam sido privilégio dos ricos, enchendo-os de vaidade e afastando-os da simplicidade e humildade exigidas pelo Eterno, que colocara esses sentimentos em seu coração para sua felicidade. Triunfo! Em breve o perigoso veneno da sabedoria e da ciência contaminará a todos! Loucura, dúvida, intranqüilidade e novas necessidades alastrar-se-ão, e eu duvido que meu terrível reino possa abarcar todos aqueles que serão contaminados por esse veneno sedutor. Essa seria, por enquanto, apenas uma pequena vitória em comparação com o que prevejo para um futuro remoto, que para nós representa apenas uma volta dos ponteiros. Aproxima-se o tempo em que os pensamentos e opiniões de ousados renovadores e críticos do antigo sejam contagiados pela descoberta de Fausto como pela peste. Surgirão pretensos reformadores do céu e da terra, cujos ensinamentos, pela facilidade de comunicação, atingirão até a choça do mendigo. Eles pensarão estar serviço à humanidade e evitando que sua mensagem de salvação e esperança seja mal interpretada; mas quando e por quanto tempo é o homem capaz de praticar o bem? O homem é tentado mais facilmente a praticar abusos e más ações em nome de suas mais lídimas aspirações do que pelo pecado propriamente dito. O povo escolhido, que o Todo-Poderoso quis salvar para sempre do inferno, através de um terrível milagre, se baterá em guerras sangrentas por idéias que ninguém entende e dilacerar-se-á como os animais selvagens. Horrores que superam qualquer loucura que os homens tenham cometido devastarão a Europa. Minhas previsões vos parecem demasiado ousadas, como vejo em vossos olhares céticos. Pois escutai: essa nova loucura será uma guerra religiosa como nunca houve igual na história dos crimes e das outras monstruosidades do homem. O fanatismo, selvagem filho do ódio e da superstição, dissolverá então por completo todos os vínculos naturais e humanos. Em nome do terror os pais matarão os filhos e os filhos matarão os pais. Reis mancharão sadicamente suas mãos com o sangue de seus súditos, fornecerão espadas a seus prosélitos mais fanáticos para que esses assassinem seus irmãos aos milhares só porque divergem de opinião. Então, a água dos rios se transformará em sangue e os gemidos de suas vítimas abalarão o próprio inferno. Acolheremos criminosos carregados de culpas que nem sequer se enquadram nos castigos que aplicamos até agora. Já os vejo investindo contra o trono papal, que procura salvar a estrutura abalada através da astúcia e da mentira, enquanto ele próprio se afunda no vício e na opulência. Os pilares da religião, tão temida por nós, se desmoronam, e, se o Eterno não socorrer a estrutura decadente através de novos milagres, ela desaparecerá da face da terra, e nós seremos novamente idolatrados nos templos como deuses. Até que ponto chegará o espírito do homem, quando ele começar a pensar sobre o que até agora tivera por sagrado? Ele dançará sobre o túmulo do tirano, diante do qual tremera ainda ontem; arrasará o altar no qual fizera sacrifícios no momento em que procurar, à sua maneira, o caminho da felicidade. Quem poderá algemar seu espírito irrequieto por milhares de anos? Poderá o Criador impedir que um único homem se aproxime muito mais do nosso reino do que do seu, só porque o criou? O homem abusa de tudo, da força de seu espírito e de seu corpo; de tudo o que ele vê, ouve, prova, sente e pensa, daquilo com que se diverte ou daquilo com que se ocupa seriamente. Não satisfeito em destruir e desfigurar aquilo que está ao seu alcance, deixa-se levar pelas asas da fantasia a mundos desconhecidos, desfigurando-os em sua imaginação. O homem é capaz de trocar até mesmo a liberdade, seu mais precioso bem, que lhe custou rios de sangue, por ouro, prazer e ilusões, quando mal chegou a conhecê-la. Incapaz de praticar o bem, treme diante do mal, acumula terror sobre terror para afugentá-lo e destrói assim sua própria obra.
Fatigado de crimes e de guerras sangrentas, descansará por um momento, e o ódio se manifestará apenas secretamente. Alguns valer-se-ão desse ódio para, em nome da verdade, se vingarem daqueles que discordem de sua fé, queimando-os em fogueiras. Outros procurarão desvendar os mistérios e enigmas indecifráveis, e os filhos das trevas lutarão ousadamente pela busca da luz. Sua fantasia inflamar-se-á para criar milhares de novas necessidades. Para escrever um livro que lhes traga fama e ouro, não hesitarão em pisotear a verdade, a simplicidade, e a religião. Escrever livros tornar-se-á ofício vulgar, através do qual gênios e charlatões procurarão glória e riqueza, sem preocupar-se com a confusão que irão causar na mente de seus irmãos e o germe do ódio que irão incutir nos inocentes. O céu, a terra e Aquele que tememos, as forças ocultas da natureza, os motivos obscuros de todos os fenômenos, o poder que determina o rumo dos astros e dos cometas, o tempo incomensurável, tudo o que é visível e invisível os homens pretenderão provar, medir, compreender, inventar palavras e números para as coisas inexplicáveis, acumular sistema sobre sistema, até que tenham conseguido atrair as trevas para a terra, onde só a dúvida brilhará, como o fogo-fátuo que atrai o peregrino para o pântano. Só neste momento pensarão estar vendo a luz, e neste momento estarei à sua espera! Quando se tiverem descartado da religião, como se fosse lixo, e forem obrigados a criar dos restos mefíticos uma nova e monstruosa mistura de sabedoria e superstição, então estarei à sua espera! Podereis abrir então as portas do inferno para receber o gênero humano! O primeiro passo já foi dado, e o segundo está próximo. Está por acontecer mais uma terrível revolução sobre a face da Terra. Eu me reporto a ela só de passagem. Logo, os habitantes do mundo antigo descobrirão novas terras, até aqui desconhecidas. Com fanatismo religioso, lá estrangularão milhares de inocentes para se apoderarem do ouro, a que estes não dão importância. Encherão esse novo mundo com todos os seus vícios e trarão para o velho vícios mais abomináveis ainda. Assim, povos que por sua inocência e ignorância, até então haviam sido poupados por nós, serão nossas vítimas. Durante séculos, derramarão sangue sobre a face da Terra em nome Daquele que tememos, e assim o inferno derrotará Aquele que nos jogou aqui, valendo-se de seus próprios favoritos.
Era isso, poderosos, o que eu tinha a dizer-vos. Festejai comigo este maravilhoso dia e desfrutai antecipadamente a vitória que posso prometer-vos, porque conheço os homens. Viva Fausto!”
Eis os motivos da festa que hoje pretendo realizar convosco: Fausto, um atrevido mortal, que como vós contesta o Eterno e, pela força de seu espírito, quer tornar-se digno de morar conosco no Inferno, descobriu a arte de multiplicar com facilidade milhares e milhares de vezes os livros, esse perigoso entretenimento dos homens, propagadores da demência, dos enganos, da mentira e do terror, fonte do orgulho e mãe da trágica dúvida. Até aqui, devido ao seu elevado preço, eles haviam sido privilégio dos ricos, enchendo-os de vaidade e afastando-os da simplicidade e humildade exigidas pelo Eterno, que colocara esses sentimentos em seu coração para sua felicidade. Triunfo! Em breve o perigoso veneno da sabedoria e da ciência contaminará a todos! Loucura, dúvida, intranqüilidade e novas necessidades alastrar-se-ão, e eu duvido que meu terrível reino possa abarcar todos aqueles que serão contaminados por esse veneno sedutor. Essa seria, por enquanto, apenas uma pequena vitória em comparação com o que prevejo para um futuro remoto, que para nós representa apenas uma volta dos ponteiros. Aproxima-se o tempo em que os pensamentos e opiniões de ousados renovadores e críticos do antigo sejam contagiados pela descoberta de Fausto como pela peste. Surgirão pretensos reformadores do céu e da terra, cujos ensinamentos, pela facilidade de comunicação, atingirão até a choça do mendigo. Eles pensarão estar serviço à humanidade e evitando que sua mensagem de salvação e esperança seja mal interpretada; mas quando e por quanto tempo é o homem capaz de praticar o bem? O homem é tentado mais facilmente a praticar abusos e más ações em nome de suas mais lídimas aspirações do que pelo pecado propriamente dito. O povo escolhido, que o Todo-Poderoso quis salvar para sempre do inferno, através de um terrível milagre, se baterá em guerras sangrentas por idéias que ninguém entende e dilacerar-se-á como os animais selvagens. Horrores que superam qualquer loucura que os homens tenham cometido devastarão a Europa. Minhas previsões vos parecem demasiado ousadas, como vejo em vossos olhares céticos. Pois escutai: essa nova loucura será uma guerra religiosa como nunca houve igual na história dos crimes e das outras monstruosidades do homem. O fanatismo, selvagem filho do ódio e da superstição, dissolverá então por completo todos os vínculos naturais e humanos. Em nome do terror os pais matarão os filhos e os filhos matarão os pais. Reis mancharão sadicamente suas mãos com o sangue de seus súditos, fornecerão espadas a seus prosélitos mais fanáticos para que esses assassinem seus irmãos aos milhares só porque divergem de opinião. Então, a água dos rios se transformará em sangue e os gemidos de suas vítimas abalarão o próprio inferno. Acolheremos criminosos carregados de culpas que nem sequer se enquadram nos castigos que aplicamos até agora. Já os vejo investindo contra o trono papal, que procura salvar a estrutura abalada através da astúcia e da mentira, enquanto ele próprio se afunda no vício e na opulência. Os pilares da religião, tão temida por nós, se desmoronam, e, se o Eterno não socorrer a estrutura decadente através de novos milagres, ela desaparecerá da face da terra, e nós seremos novamente idolatrados nos templos como deuses. Até que ponto chegará o espírito do homem, quando ele começar a pensar sobre o que até agora tivera por sagrado? Ele dançará sobre o túmulo do tirano, diante do qual tremera ainda ontem; arrasará o altar no qual fizera sacrifícios no momento em que procurar, à sua maneira, o caminho da felicidade. Quem poderá algemar seu espírito irrequieto por milhares de anos? Poderá o Criador impedir que um único homem se aproxime muito mais do nosso reino do que do seu, só porque o criou? O homem abusa de tudo, da força de seu espírito e de seu corpo; de tudo o que ele vê, ouve, prova, sente e pensa, daquilo com que se diverte ou daquilo com que se ocupa seriamente. Não satisfeito em destruir e desfigurar aquilo que está ao seu alcance, deixa-se levar pelas asas da fantasia a mundos desconhecidos, desfigurando-os em sua imaginação. O homem é capaz de trocar até mesmo a liberdade, seu mais precioso bem, que lhe custou rios de sangue, por ouro, prazer e ilusões, quando mal chegou a conhecê-la. Incapaz de praticar o bem, treme diante do mal, acumula terror sobre terror para afugentá-lo e destrói assim sua própria obra.
Fatigado de crimes e de guerras sangrentas, descansará por um momento, e o ódio se manifestará apenas secretamente. Alguns valer-se-ão desse ódio para, em nome da verdade, se vingarem daqueles que discordem de sua fé, queimando-os em fogueiras. Outros procurarão desvendar os mistérios e enigmas indecifráveis, e os filhos das trevas lutarão ousadamente pela busca da luz. Sua fantasia inflamar-se-á para criar milhares de novas necessidades. Para escrever um livro que lhes traga fama e ouro, não hesitarão em pisotear a verdade, a simplicidade, e a religião. Escrever livros tornar-se-á ofício vulgar, através do qual gênios e charlatões procurarão glória e riqueza, sem preocupar-se com a confusão que irão causar na mente de seus irmãos e o germe do ódio que irão incutir nos inocentes. O céu, a terra e Aquele que tememos, as forças ocultas da natureza, os motivos obscuros de todos os fenômenos, o poder que determina o rumo dos astros e dos cometas, o tempo incomensurável, tudo o que é visível e invisível os homens pretenderão provar, medir, compreender, inventar palavras e números para as coisas inexplicáveis, acumular sistema sobre sistema, até que tenham conseguido atrair as trevas para a terra, onde só a dúvida brilhará, como o fogo-fátuo que atrai o peregrino para o pântano. Só neste momento pensarão estar vendo a luz, e neste momento estarei à sua espera! Quando se tiverem descartado da religião, como se fosse lixo, e forem obrigados a criar dos restos mefíticos uma nova e monstruosa mistura de sabedoria e superstição, então estarei à sua espera! Podereis abrir então as portas do inferno para receber o gênero humano! O primeiro passo já foi dado, e o segundo está próximo. Está por acontecer mais uma terrível revolução sobre a face da Terra. Eu me reporto a ela só de passagem. Logo, os habitantes do mundo antigo descobrirão novas terras, até aqui desconhecidas. Com fanatismo religioso, lá estrangularão milhares de inocentes para se apoderarem do ouro, a que estes não dão importância. Encherão esse novo mundo com todos os seus vícios e trarão para o velho vícios mais abomináveis ainda. Assim, povos que por sua inocência e ignorância, até então haviam sido poupados por nós, serão nossas vítimas. Durante séculos, derramarão sangue sobre a face da Terra em nome Daquele que tememos, e assim o inferno derrotará Aquele que nos jogou aqui, valendo-se de seus próprios favoritos.
Era isso, poderosos, o que eu tinha a dizer-vos. Festejai comigo este maravilhoso dia e desfrutai antecipadamente a vitória que posso prometer-vos, porque conheço os homens. Viva Fausto!”
In: Antologia humanística alemã.
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