Ditado e Manifesto
Entre as trevas em que me encontro, neste ditado quero, antes de tudo, saudar o ânimo científico que encoraja meu irmão médico, Ôto. Não é ainda a oportunidade de nomeá-lo. Suficiente esse carinhoso apelido de desconhecidas origens: Ôto.
Deem-me um gole de conhaque: é uma bebida honesta e revigora.
Quero que esta fita magnética registre o som do meu beijo na testa de Bianca, amante, amiga e agora também enfermeira.
Quero, igualmente, ditar duas epígrafes extraídas de obras do senhor Dedda e não é necessário, Bianca, que você busque os livros. Eu as sei de cor. E vou dizê-las pausadamente:
PRIMEIRA EPÍGRAFE
"Alterando, na essência, conhecidos versos de Baudelaire, é o momento de dizer:
Ah! como o mundo é pequeno à luz das lâmpadas
E como é grande aos olhos da recordação!" (Gavino Taviani Dedda in "Ritorno", Ed.Pattuglia, Torino, 1951).
SEGUNDA EPÍGRAFE
"Jamais, e há séculos, a desonra atravessou, para em seguida permanecer impune, a soleira do Palazzo Dedda" (Gavino Taviani Dedda in "Ritorno — II", Ed. Pattuglia, Torino, 1964).
Errei, Bianca?
— Em nada, mas não se emocione.
Repetiríamos tudo, Bianca? Repetiríamos tudo o que aconteceu na Cornuália? Repetiríamos também o que se seguiu?
— Sim, tudo. Repetiríamos tudo. Agora, dite sobre o passado. É a ordem de Ôto e ele sabe o que faz.
Na infância, Bianca, lembro-me de cânticos e festas, raros os episódios dolorosos: fui uma criança feliz. Medos? Pouquíssimos. Amigos muitos e, alguns, maravilhosos. Um deles, Flávio, recebeu-me e à Bianca, faz poucos anos, no seu pequeno apartamento no Recife e ao saber sobre as perseguições que sofríamos, ofereceu-nos acolhida. Permanente, se quiséssemos. Ele e os dois filhos, armados e com especiais precauções, nos trouxeram até este hospital baiano.
É evidente, assim, que se Gavino Taviani Dedda e seus asseclas chegarem a tempo para assassinar-me, em nome de uma honra abstrata, tecida por bárbaros preconceitos, a circunstância de eu ter sido feliz desde a infância não lhe será favorável na hipótese de julgamento. Os integrantes do Júri, nisso insisto, dirão que o assassinado foi uma criança feliz, o que não era e seguramente ainda não é comum. O habitual, o comum, pelo menos naquele tempo, consistia em aprisionar os meninos em pequenos espaços povoados de temores, castigos, constantes reprimendas, imposições grosseiras. Nada disso sofri: a cidade, tão bela, também integrava o meu mundo. Um dos divertimentos do pai de Flávio era o de conhecer as linhas de bondes de todos os bairros e íamos onde desejássemos.
Quando acordava, o mar mostrava-se belo aos meus olhos ávidos de novidades. Mar extenso, azul, e seu generoso corpo era passeado por saveiros e outras embarcações mais simples. Canoas, por exemplo. Canoas dos pescadores de tainhas e agulhas-brancas.
— Agora você está mais calmo, querido. É como deve ser.
Sinto-me relaxado, Bianca.
— Procure narrar usando pausas mais longas. Conte-nos sobre os camarões, conte como você fez na Cornuália. Recorda?
Ah!, os camarões. Como esquecê-los? Arrastados às praias de Itapajipe mediante o uso de redes, eram pequenos, eram miúdos até, mas de sabor insuperável. Que se passa? Que repentina agitação é esta aqui no quarto? As vozes são amigas, mas sinto que o ambiente é tenso. Que está havendo?
— Querido...
Sim, Bianca, sim, diga! Não se esconda nada.
— Há um chamado de Roma para mim. Preciso atendê-lo. É necessário que você prossiga, pausadamente, falando dos camarões.
Nem todos miúdos, quero acentuar. Meu pai os tratava delicadamente, limpando-os de sorte a deixá-los imersos numa grande bacia de flandres. "Para tomar gosto", como mamãe explicava, e eles restavam horas sob o tempero. Depois, eram enfiados em espetos de bambu e assados sob o fogo lento, fogo de braseiros. Que maravilha degustá-los com refresco de pitanga, de manga ou cajá, frutas dulcíssimas que eram muitas no imenso quintal de nossa casa. Disso falei, emocionado, aos companheiros do XXIII Congresso Internacional dos Armadores, abnegados defensores do retorno aos barcos à vela, febris de entusiasmo apesar de ser fria a Cornuália. Disso falei e não escutaste, Gavino Taviani, porque abandonaste tua mulher, abandonaste Bianca, e assim para a busca de prazeres violentos, em Londres.
Sim, Gavino Taviani Dedda, como o mundo é grande aos olhos da recordação e pequeno à luz das lâmpadas!
Nós tínhamos barcos. Em um deles, se quisesse, se a um dos irmãos mais velhos pedisse, poderia ir até a Ilha de Maré, antigo lazareto para escravos vindos da África, e ali vencer, percorrendo-a de ponta a ponta, o principal dos meus poucos medos. Nunca me atrevi. Quase permanentemente ensolarada ou enluarada, para mim a ilha vivia em brumas marrons. Tantos anos passados, tantos contentamentos acumulados, o antigo temor infantil não é apenas herança feita de horas indormidas. Suponho, por isso, que, se noturnamente ainda me fosse possível repousar em qualquer das casas da ilha, ouviria lamentos de negros escravos submetidos ao horror do lazaretamento.
"Ali meu avô morreu de uma febre" — disse à impressionável criança que fui um daqueles idosos pescadores que amanheciam com suas canoas e suas redes, na praia Itapajipana. Dizia "ali" e olhava a ilha. Para Bianca, o lugar do medo, a ilha, é o Palazzo dos Deddas, numa colina nas imediações de Turim. Espero poder ditar algo sobre esse Palazzo, descrito em "Ritorno".
Sirvam-me mais um conhaque.
Quero deixar registrado, para possível aproveitamento médico, que sinto, de quando em quando, um ardor no olho direito. E assim desde que Bianca saiu do quarto. Talvez eu esteja apreensivo.
— Seria útil o senhor continuar a narrativa.
Quem fala deste modo?
— Um dos meus sobrinhos. Tio Ôto foi quem recomendou: não cessar a narrativa. Ou dormir para recomeçar quando o senhor se sentir calmo, interessado.
Há vinho no quarto?
— Há. Deseja agora?
Não.
— O senhor contava sobre os barcos, os pescadores...
Por que Bianca demora tanto?
— As ligações internacionais não são tão fáceis quanto se anuncia. Mas, como falei, o senhor contava sobre pescadores, barcos, camarões...
Eram gostosos, um gosto inesquecível e há quem diga que não existe memória gustativa. Ora, que tolice! Aqui, em Salvador, na véspera do meu embarque para a Inglaterra, a caminho do XXIII Congresso, na Cornuália, antes, portanto, de um acidente me ter oferecido oportunidade de conhecer Bianca, amigos muito queridos ofereceram-me almoço e havia camarões–no-espeto apenas razoáveis.
Mas foi, aquele, um almoço regado a bons vinhos do Remo e, ao final, houve licores. Ali mesmo escrevi uma carta a Gavino Taviani Dedda, convidando-o para o encontro na Cornuália. Em seguida desejei uma peregrinação e fomos, quatro ou cinco pessoas, à praia do Poço, também conhecida como "a do Perau", em Itapajipe, outrora a mais bela e pacífica desta minha cidade do Salvador, que pretendo seja o derradeiro refúgio diante da implacável e assassina perseguição dos Deddas. Estamos cansados, Bianca e eu, de tantas fugas, anos e anos, desde a Cornuália!
— Não se exalte. Quer agora uma taça de vinho?
Conhaque. Não, não, prefiro vinho. Conhaque excita.
Este é um vinho apreciável. Talvez fosse bom fumar
Obrigado.
Itapajipe... Irritei-me. A casa onde nasci, de exterior forma inalterada, com seus dois andares e o velho portão de ferro, fora pintado de um amarelo agressivo. Mais ainda: o novo proprietário transformara os amplos janelões em simulacros de festas, a querer impedir que os passantes vissem o interior da sala-de-jantar, e, bem mais espaçoso, o interior da sala-de-visitas. Tinham sido duas, antes, as cadeiras-de-balanço. Nelas, janelões abertos, diante de nós e de todos, vizinhos ou não, quem quer que fosse, papai e mamãe permutavam confidências ou risos, animavam nossos diálogos, adotando decisões que nos afetariam — e tudo sem falsa severidade, sem esses contentamentos também condenáveis quando ostensivos.
Mas, eu falava da casa.
Apodrecia, quase desabada, vi a pérgola que alguns dos meus irmãos haviam construído na varanda, florindo-a com jasmineiros e mimos-do-céu. Mais além da varanda, desaparecidas as árvores frutíferas, o quintal estava pejado de galinheiros. Havia até uma pocilga!
No lado de lá, no lado da praia, também a paisagem exibia-se sob violentas agressões, mar sujo, sem o antigo perfume. Perguntei a um vendedor de sorvetes industrializados: "E os camarões, mesmo os bem miúdos?". Respondeu: "Estão mortos, senhor, estão mortos". Identifiquei amargura no seu modo de falar e ele continuou: "As agulhas-brancas, as tainhas, as petitingas. Mesmo as ostras, tão poderosas, estão mortas. Os navios vazam petróleo e o petróleo mata. E há as fábricas: as fezes delas vêm para as águas. Mas, onde existem mangues, a gente ainda pode catar papa-fungos, sarnambis, sururus. Lembra-se o senhor aqueles caranguejos que havia nos mangues, atrás do Largo do Papagaio? É, senhor, também estão mortos. Resta-nos a misericórdia de Deus". Eu disse: uma das razões pela qual Deus permite crimes assim não passa de expediente para Ele alegrar-se no uso de sentimentos como a misericórdia, a piedade. "O senhor é materialista?", o vendedor perguntou-me. Respondi: como poderia sê-lo se falo na existência Dele? E agora acrescento: acalmei, com a indignação, o vendedor e inclino-me a considerar que lhe fiz um bem. Não é útil discutir o dispensável.
Um pouco mais de vinho.
Obrigado. Sim, é um bom vinho. Infelizmente não sei distinguir os melhores dos excelentes e, entre estes, existem os excepcionais. Bianca, sim, Bianca sabe bebê-los e diferenciá-los. Ah, sim, quero ditar que não desdenhei o fato de o homem, em Itapajipe, vender sorvetes industrializados. Se fui áspero, creio ter sido, é que diante da Itapajipe tão violentada nele apenas percebi manifestação de amargura. Não havia protesto.
— No litoral Norte, tio, existem ainda belas praias, talvez tão belas quanto a antiga Itapajipe.
Irão matá-las também. A menos que vocês reajam, sem hesitação no emprego da violência se e quando necessário. Ah, este tema me leva a outro, mais geral e também básico. Ao nos encontrarmos em Cornuália, antes de ele se declarar entediado diante dos rumos que o XXIII Congresso ia tomando, Dedda foi categórico quando me disse: " O melhor do que temos em comum é o nosso amor ao passado. Ao que nele há de pedras e de metais. Amemo-lo com maior intensidade e mais espírito prático". Nada repliquei, mas Bianca compreendeu o meu olhar de reprovação.
Neste ditado quero afirmar que jamais idolatrei o passado e sim que nele amo o que há de bom, não importam as idades, as épocas, os diferentes tipos de civilização. Haja sorvetes industrializados, certo, mas haja também famílias e educandários que recuperem o antigo hábito de sorvetes feitos com frutas frescas e em cantimploras.
Gavino Taviani Dedda ama o péssimo do passado e o ama com perícia literária e o idolatra usando ardis estéticos notáveis. Confesso que, a princípio, com ele me iludi. Atribui-se a uma mulher a seguinte definição para o Marquês de Sade: "ele tem um jeito de falar que faz com que todo mundo se torne sórdido, e sentimos mais vontade de morrer do que estar vivo". Também assim — e os textos de "Rinoto" testemunham — é Gavino Taviani Dedda. Mas, a ele falta o que sobrava em Sade: total intimidade, total associação com o Diabo. É mesquinha, sem nenhuma grandeza, a perseguição que contra nós realiza: tudo o que quer, somente o que quer é nos matar!
— Nesta fase do tratamento, senhor, é mais conveniente falar da infância: as pessoas, as alegrias, os medos, as frustrações, os ambientes, as aspirações, os sonhos, os pesadelos...
Eu me recuso a ser um doente padrão, um sego padrão, um fugitivo padrão. Exijo respeito às minhas singularidades!
— Tio, eu não quis ofendê-lo.
E eu, de minha parte, não devia ter gritado. Você tem sido atencioso. Acertarei outro cigarro e mais vinho.
Obrigado. Ah, ainda sobre nossa casa Itapajipana: ao invés dos móveis de palhinha, notei conjuntos de napa. Quero repetir: napa! Quero esquecer a casa.
Afogado pela poluição brutal, era outro o mar, e suas algas, antes verdes, de mornas penugens femininas, eu as senti oleosas, enegrecidas, roídas por misteriosos produtos químicos. As grandes árvores, ornamentais umas, outras também propiciadoras de frutos, todas potentes para ensejar sombras, muitas, quase todas foram assassinadas pela fúria de especuladores imobiliários destituídos de imaginação e por esses administradores da coisa pública, do bem público, que se transformaram em deificadores do asfalto. Estúpidos! Porque, imbecis, o correto, o humano, o belo, em lugares como Itapajipe, é a utilização de paralelepípedos tecnicamente bem ajustados, aderidos ao solo, com pequenos afastamentos que permitam floresçam as magníficas "gramas-tostão"!
— Senhor, perdoe a interrupção: é que a senhora Bianca manda informar que são magníficas as notícias vindas de Roma.
Bianca, pobrezinha, é uma ingênua. Aparentemente tão forte, na realidade é uma mulher frágil. Decerto os Deddas tramam nova armadilha. Não quero ditar sobre isto. Um copo de vinho.
Obrigado.
"E os barcos, onde se encontram os barcos?", perguntei ao vendedor de sorvetes industrializados. ele respondeu:"Um que outro às vezes aparece. O resto é tudo carcaça". Itapajipe sem barco, aquela virgindade do mar era de inquestionável impudência. Ou para melhor dizer, impotência. Sem ondas, assim empobrecido de sentimentos afirmativos, o mar do meu amor de infância e adolescência estava moribundo. E me senti triste. Esse estado de espírito, incomum naquela época foi percebido por uma amiga e pouco mais tarde vimo-nos sós na agradável enseada dos Tainheiros, em um bar.
Terei ditado, antes, que vi o primeiro hidroavião de toda minha vida, precisamente ali, na enseada dos Tainheiros? Sim, ali. Alguns dos meus irmãos nadaram na esteira do aparelho, voltando à praia sem qualquer mancha de óleo.
Naquele bar, sob constante brisa, a amiga chorou em meus ombros por um amor que se fora. Enxuguei-lhe as lágrimas e contei-lhe que, dentro de poucos dias, se aceito o convite que eu escrevera ainda quando o restaurante, iria conhecer pessoalmente, na Inglaterra, um dos mais extraordinários escritores italianos do nosso século: Gavino Taviani Dedda. O erudito Dedda de quem estava a traduzir, não sem esforço de recriação literária, uma obra-prima do memorialismo: "Ritorno". E o encontraria no decorrer do XXIII Congresso, em paisagem bastante apropriada, a da Cornuália, de grandes rochedos e elevados penhascos, cujos mares, segundo lendas de pescadores, escondem, sob densas florestas submarinas, imensas catedrais de pedras. Disponho de anotações a este respeito.
Pouco a pouco, valorizando algumas das passagens de Dedda que, então, eu sabia de cor, minha amiga foi recobrando a exuberância de um temperamento alegre que sempre triunfa sobre vicissitudes de toda a ordem, e algumas, bem sei, de agressividade incomuns. Quando narrei que Gavino Taviani Dedda empregara grande parte dos seus 50 anos para reconstruir, pedra e pedra, o Palazzo medieval herdado de ancestrais, muito arruinados pelas transformações que Napoleão Bonaparte introduzira na Itália, a amiga comentou: "É um homem de valor. Mas, por que razão, como você conta, ele odeia as épocas de claridade na Itália". Respondi:não sei.
Agora, porém, nada ignoro.
— Fale de sua infância, senhor, de sua adolescência...
Não force! Não me force a nada. Existem mesmo, como você disse, no litoral Norte, praias tão belas e puras quanto foram, no passado, as de Itapajipe?
— Sim, é uma secessão de praias: a do Forte, mais além a de Subauma...
O passado, insisto, não é um fardo e tive, antes do conflito com os Dedda, desejo de recuperá-lo no que fosse possível: amo a memória e, na solidão, costumo comemorar bons episódios ocorridos. Em Itapajipe, por exemplo, as lágrimas da amiga reenviaram-me a um dos raros dias em que recordo ter chorado, na infância. Um dos meus irmãos e eu jogávamos futebol com uma bola improvisada e o fazíamos na varanda que alcançávamos através do portão de ferro. Situada à entrada da casa, a varanda era, para nós, um dos mais alegres sítios, porque espaçoso e ensolarado, traço de união entre a praia e o quintal. Do segundo andar, bem alto, alguém avisou: "Meninos, saiam daí que vou jogar a trouxa".
Era uma grande bola de roupas sujas, toalhas, cuecas, camisas, essas coisas, enroladas num lençol largo, "o lençol do casal". Quando foi atirada lá do alto, meu irmão, querendo-se goleiro, tentou apará-la com arrojo e a elegância de um Planicka — e o impacto quebrou-lhe os pulsos. Não gritou, mas compreendi imenso espanto, nele o medo incrustado, ao ver caídas as duas mãos, e chorei. Ele ordenou: "Vá chamar Ôto!" É o mais velho dos nossos irmãos, dele já falei nos inícios deste ditado. Concluindo o curso de medicina, estudava em alguma parte da casa, mas não me lembro se a ele apelei. Suponho que não: o pior do medo é que nos desarma, nos subjuga, nos enfraquece e, desse modo, por via de conseqüência, o inimigo, seja quem ou o que for, torna-se mais poderoso. Talvez eu tenha gritado, não sei.
Vejo-me na praia, sozinho, encostado numa catraia encalhada, chorando — avaliem esta alegria! — uma morte que não houve, graças a Deus. Sinto-me acariciado pela mais idosa das irmãs e, agora, meu paladar delicia-se com o gosto da "manga-espada" que me oferta. "Ninguém vai morrer — ela diz. Ôto garantiu que tudo está bem".
Todos temos nossos heróis, Gavino Taviani Dedda! Os teus — e um dos poucos, Wilson, deixou rastros que encontrei —, os que celebras com palavras arrancadas ao sangue impuro, ao ódio socialmente inconseqüente, à vingança brutal, remontam ao primeiro século após Jesus, e nenhum deles é simples. Risivelmente trágicos, sequer chegam a ser alguns desses construtores dos cipoais de equívocos, cevados pelas generalizações de canhestros eventos, os quais, como crônicas históricas, limitam-se às sucessões de reis, aos pormenores de batalhas que produzem as exaltações dos idiotas!
Este perfume... É você, Bianca?
— Sim querido, sou eu. Há ótimas notícias.
Sinto sua alegria, ela ativa seu perfume, mas não interrompa.
— Querido...
Não me interrompa! Quero conhaque e cigarro. E silêncio, eu quero todo o silêncio possível.
Obrigado. Seja o que tenha acontecido em Roma ou no inferno, quero ditar ainda o seguinte;
És um desses antiquários sebentos, Gavino Taviani Dedda. Em "Ritorno", ao descreveres os saturnos e úmidos interiores do Palazzo que reconstruíste na busca de glórias enfermas, fosse honrado como estudioso. Quero dizer, foste objetivo, fiel aos documentos encontrados, os códices, e tanto que estiveste na iminência de diagnosticar a tua moléstia principal e as dos teus antepassados. Da verdade tão próximo chegaste que quase te foi possível compreender as razões de Bianca fugir, desesperada, dos teus escuros salões, dos imensos corredores, das limosas escadarias. E saiba: ela ainda te respeitava como marido quando a reencontraste na humilde hospedaria de Portofino.
— Querido, tudo mudou!
— Tio Ôto pede que ele continue ditando, senhora Bianca. Acalme-se.
O tempo e a História, Gavino Taviani Dedda, não perdoam os que os acreditam senis, trôpegos, paralisados, repetitivos. Tempo e História exigem-se incessantemente renascidos, na substância e na forma, preservadas suas essências vitais.
Meu herói familiar, Gavino Taviani Dedda, não é Wilson abestalhado pela ânsia do Poder. É esse irmão médico, Ôto, homem simples e por isso poderoso, a acreditar-se capaz de devolver-me a visão, anular esta cegueira causada pelo cansaço de tua perseguição. É surpreendentemente capaz na medida em que se sabe das técnicas terapêuticas atuais, respeita a sabedoria de antigos procedimentos: ele não vasculha a alma e sim apalpa.
O que agora dito é também uma ata de acusação contra tu e teus sicários. E é um testemunho para o restabelecimento da verdade. Porque Bianca e eu, no início, só tivemos a culpa da mútua simpatia: contra os teus, defendemos idênticos pontos-de-vista sobre a civilização e progresso. Mentes, Gavino, calunias quando no capítulo "L'altezza d'ingegno", em "Ritorno — II", afirmas que Bianca simulou um "escorregão" durante a visita que os partícipes do XXIII Congresso fizemos aos Grandes Penhascos da Cornuália. Na verdade, ela morreria, espatifada nas pontiagudas pedras, se o dr. Perrand e eu não a amparássemos, com o risco de nossa próprias vidas: ela estava desolada com tua repentina ausência.
É verdade e todos viram: eu beijei as alegres lágrimas choradas por Bianca ao ver-se salva. Igualmente é verdade que me embriaguei de afetividade ao beber aquelas lágrimas. Por que suas mãos estão tremulas, Bianca? Desejo vinho e quero que você prove desta marca.
Obrigado.
— É um vinho razoável, querido. Talvez mais do que razoável.
Quero ditar mais uns dois ou três episódios da minha infância: eles é que me fizeram mais simpáticos à Bianca e aos convivas do XXIII Congresso Internacional dos Armadores.
Um parêntesis, Bianca, sobrinho, todos: os antigos pescadores e gentes das praias de Itapajipe, desde a penha até o Bonfim, diziam Ilha da Maré e não Ilha de Maré. Ignoro porque. Sei que, isto sim, certa noite, acordei com pesadelos, acreditando ter ouvido lamentos de negros escravo. E acordei chorando. Uma das irmãs acudiu-me e dormi, sono que me revigorou para as traquinagens da manhã seguinte. Quase um poema em prosa, as soníferas certezas ditas pela minha irmã foram mais ou menos as seguintes:
Dorme que teu barco é sólido.
Esta casa de tijolos, pedra, cal e óleo de baleia.
Dorme que estás seguro em teu barco de pedras.
Dorme que apesar da tempestade prometida.
Dorme no interior da tempestade, de punhos cerrados.
Dorme e teu barco de pedras te levará à Ilha.
E então, conhecendo-a, vencerás o medo.
Tiveste razão, Gavino Taviani Deddas, ao alterar os versos de Baudelaire. De igual modo quando, no capítulo inicial de "Ritorno", tua preocupação foi a de cantar pedras mortas frias, assinaste uma verdade essencial: "com a magia e as armas da recordação, somos senhores". Sim, isto é verdade. Em Cornuália, ao receber de Londres o seco telegrama no qual anunciavas tua ida para Hamburgo e à Bianca ordenavas retorno ao sombrio Palazzo, o medo aos marrons de tua alma e aos de tua fortaleza deu-me coragem para propor uma fuga. Não hesitei muito e Bianca, ao aceitar, avisou que seríamos perseguidos, acossados, pelos sicários, tu mesmo a comandá-los, se necessário. Minto, Bianca?
— Não. E agora sabe-se melhor o gosto do vinho.
Teus assassinos , Gavino Taviane Dedda, inclusive teu próprio irmão, Giancarlo, nós os despistamos em Londres, com a inestimável ajuda do Dr. Perrand. Onde está Ôto? Quero que ele ouça, pessoalmente, esta parte.
— Ele foi dormir, hoje, na Ilha de Maré, tio.
Por quê? Responda, Bianca: por quê?
— Não sei, querido, mas em face das notícias de Roma já enviamos uma lancha veloz para buscá-lo. É ótimo, este vinho. Lembre-se, querido, que de Londres, no avião particular do Dr. Perrand, fomos para Bruxelas.
E, depois, Paris. Sim, concordo.
— Tio, por favor, fale da infância,da adolescência, dos pescadores de Itapajipe, de vovô, de vovó...
— Há tudo isso no que está ditando, jovem. A criança que fomos nunca nos deixa.
Ah, Bianca, você é maravilhosa! De Bruxelas a Paris. Sinto-me alegre. A sensação, Bianca, é a de que agulhas sujas que me enfiaram no corpo estão saindo. Lentamente. Mais vinho, por favor.
Obrigado.
De Paris, sempre fugindo, fomos à Romênia, um belo País, e então conseguimos paz para algumas noites de amor sem pressas e de sonhos em pesadelos. Assim porque antes da Romênia, sempre atemorizada, Bianca suspeitava das cidades mais populosas. Na Romênia, não permanecemos mais que algumas horas em Bucareste. Cedo, em um veículo que amigos do Dr. Heron Perrand, nos haviam conseguido, partimos para o campo. Ou isto aconteceu durante nossa estada na Hungria, Bianca?
— Na Romênia, com certeza.
Em um campestre amanhecer romeno, o automóvel alcançou uma aldeia. Esqueço-lhe o nome. Importante é registrar que ali conhecemos a chamada "Igreja Negra", de amplos janelões para vitrais que vivificavam as luzes vindas do exterior. É um templo e é uma festa.
— As pessoas rezavam, manhãzinha, mostravam seus trajes coloridos. Havia, apenas, uma mulher vestida de negro, ao lado do homem de longos bigodes que usava uma túnica. Baixote, olhos de mongol, severo, fervoroso na sua religiosidade.
Prossiga, Bianca. Você está ditando muito bem. Sua voz é de uma jovem alegre. È quase a mesma voz que ouvi na Cornuália. É o milagre do vinho?
— São as boas notícias de Roma. Mas seu irmão Ôto, já a caminho, pediu-me que nada diga antes que ele chegue.
Porque é experiente. Porque advinha, como eu, tratar-se de nova cilada dos Dedda. Você esquece que eles anunciaram em toda Europa a morte de sua mãe, em Gênova, querendo atraí-la e a mim?
— Tio, por favor, dê continuidade ao ditado. O senhor encontra-se sob tratamento e...
A Romênia me encantou. Sinto-me sonolento. Me acenda um cigarro, Bianca. Ah, como é doce a sua saliva. Doravante você acenderá, salivando, todos os cigarros que eu pedir.
A "Igreja Negra". Repito: é um templo e é uma festa. Sua fama vem dos fins da Idade Média, aí por volta de 1410 ou 1420, não tenho boa memória para datas. Nela abrigados, os aldeões resistiram a fúria dos bárbaros chefiados por um certo Wilson, cognominado "O Ruivo". Nos inícios das noites, liderados por Oton I — dou ênfase ao nome deste herói: Oton I! —, saíam os homens e mulheres que municiavam com fé e esperança os guerrilheiros espalhados nos bosques, deles recebendo alimentos, agasalhos, convicções. Muitos e muitos meses assim agindo, impuseram-se aos invasores, expulsando-os. Wilson, "O Ruivo", um dos ancestrais dos Deddas, morreria anos depois, já decrépito, abobalhado por força de sucessivas derrotas, no assédio a Constantinopla.
Os tijolos da Igreja — lembra-se, Bianca? — ainda têm as marcas impressas pelas fumaças, dos muitos incêndios que destruíram a aldeia hoje reconstruída. O fogo e a coragem, o fogo e a amizade, o fogo e essas indefiníveis certezas que o amor produz, escreveram naquelas exteriores paredes da Igreja muitas lições. E gravaram uma palavra, incompreensível para Deddas e Wilsons, palavra que é forte e maviosa em qualquer idioma: Dignidade.
— E gravaram outra palavra: amizade.
Ôto, irmão, você está aqui?
— Nunca deixei de estar aqui e este é o momento de lhe dizer que os Deddas, Gavino e Giancarlo, estão mortos.
Onde?
— Na Espanha.
É outro ardil deles, outra armadilha.
— Não é. Um avião que fretaram com destino ao Brasil caiu em mar da Espanha. Gavino, Giancarlo, todos os serviçais. Todos identificados.
Então, Bianca, foi uma farsa a ligação internacional com Roma.
— Não foi, querido. Se sou viúva de Gavino, e sou, tinha o direito de exigir que seu corpo e os corpos dos demais fossem transportados para Salvador. E estão sendo. Para serem enterrados na Ilha de Maré.
Há claridades nos meus olhos, Ôto. Mande que arranquem estas vendas.
— Não.
Tenho certeza que já posso ver. Mande arrancar estes esparadrapos, estas gases!
— Não.
Bianca, querida...
— Não.
— Você deve ir assim como está até Ilha de Maré. Para assisti-los enterrados sob lama, pedras, poeira, algas podres, mariscos e peixes mortos. E lascas de madeira podres, e pedaços de asfalto.
Bianca, amor... mais vinho
— À vontade.
Obrigado.
Texto do premiado livro "Colagem Desvairada em Manhã de Carnaval.
Prêmio D. Martins de Oliveira - Contos.
Ariovaldo Matos
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