O Barco de Papel
Quando criança, eu esperava as tempestades das águas de março. O
papel ofício, roubado do gabinete de meu pai, era meticulosamente
parafinado com os tocos de vela que eu guardava quando a troca era feita
por minha mãe, em honra de a Santa Teresa de Lisieux.
Deitava a folha branca em piso liso e, meticulosamente, ia impermeabilizando-a com a parafina em verso e anverso. As dobras, no papel, se repetiam até ficar concluído o chapéu de Napoleão. Era assim que o chamava na décima dobradura, quando, com lápis de cera, eu desenhava seus navegadores.
Meus personagens preferidos, riscados a cores, na ponta do chapéu, eram os piratas Barba Ruiva ou Barba Negra. Ao desenhá-los, com o tapa olho, eu os imaginava gritando: “Todos ao convés, pestilentos; carregar os
canhões” e quase que via as naus espanholas tentarem fugir da salva de
tiros que derrubava mastros e velas ao gritar: “Preparar; apontar; fogo!”. E
partíamos atrás, para abalroá-los, navegando “a todo pano”. Imaginava os
tesouros que enterraríamos em ilhas paradisíacas e desertas no
mediterrâneo, antes de irmos nos embriagar com as dançarinas de Ula Ula
em Tortuga...
Mais quatro dobras e minha embarcação ficava quase pronta. Faltava desenhar as escotilhas e por a âncora, que fazia com um clips e um tiquinho de cordão. Quando minha mãe se distraia, eu pegava um ou dois marinheiros, raptados do “Forte Apache” que meu irmão caçula ganhara no Natal. Outra opção era fazê-los com massa de modelar, quando as tinha para isso, e pronto, era só esperar a chuvarada.
O céu cinza escuro terminava por deixar a chuva cair e, novamente,
escondido, eu saia pela porta do fundo de minha casa e subia a rua
correndo para soltar o barco na corredeira da sarjeta, que a água ainda límpida trazia de volta, na Avenida Paulo VI, até a porta de casa.
Assim eu ficava indo e voltando sob a chuva, a navegar os sete mares, isso, enquanto não era descoberto por algum vizinho fofoqueiro ou pela empregada para me denunciar.
Eu acreditava que me deduravam por inveja, mas minha mãe dizia,
enquanto me enxugava para trocar de roupa, que era “por quererem o
meu bem”. Não sabiam eles que chuva não mata? E por “quererem o meu
bem”, eles só conseguiam encurtar minha alegria, estancar minha felicidade.
Daí concordar com a frase que hoje pouco ouço, mas meu pai a dizia
sempre: “De boas intenções o inferno está lotado”.
Do livro em E-book de Ricardo Matos - "Crônicas e outros textos levianos".
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