Teatro - A Engrenagem - De Ariovaldo Matos


 Palco escuro e vazio

Uma voz -- Respeitável público!

Ruídos de máquinas. Apitos. Sinos badalando. Patas de cavalo sobre o chão. Gritos de multidão. Ruídos de metais arranhando metais. Hinos.

Uma voz -- Parem! Parem!

De repente, Silêncio.

Uma voz -- Respeitável público. (Pausa). “Há alguns milhares de anos, um raio do cosmo caiu, por acaso, sobre uma partícula de azoto cheia de moléculas de oxigênio e hidrogênio, próxima da terra. E se fez a vida, infinitamente pequena. Uma célula. Qualquer coisa no interior dessa célula lhe ordenava que também se dividisse muitas e muitas vezes. E surgiu uma alga. Azul, dizem os sábios. E houve muitas outras sobre a terra. Sempre sob a influência dos raios cósmicos e da coisa que continuava a dar ordens. Algumas entre elas se transformaram em criaturas vegetais que necessitavam de raízes para viver. Outras mergulharam no oceano e se transformaram em peixes. Outras ganharam asas e bicos. E depois houve uma que ganhou pernas, braços e um cérebro que se pôs a fabricar inteligência. Era o homem e ele em nada se parecia com a tal alga azul da qual nasceu”.

No palco escuro ouvem-se três batidas surdas. É o tribunal que se reúne. Luz negra sobre o rosto do homem que se levanta.

Voz 1 -- O réu tem algo a declarar?

Homem -- Ordenaram  que  eu  me  levantasse  e aqui estou. Que mais devo fazer? Tudo isso se está tornando  muito  monótono,  muito  maçante.

Voz 1 -- É deferido ao réu o direito de dizer algumas palavras antes que seja proferida a sentença. Desse modo, não por complacência e sim obedecendo ao que determina a Lei, renovo a indagação: o réu tem algo a declarar?

Homem -- Que coisas os senhores gostariam que eu declarasse? Que eu me reconheço culpado? Certamente que sou culpado, na  medida em que os senhores entendem o que seja uma culpa. Sim, ao nível do entendimento permitido aos senhores, eu sou culpado. O que os senhores não quiseram discutir é que, não raro, os Regulamentos aprovados, e aos quais os senhores se sujeitam, distribuem certificados de culpa aos inocentes  e atestados de inocência aos culpados. Meu avô, tenho a certeza disso, me absolveria. O rapaz que estava no jardim me absolveria também. Meus pais, ao contrário, me condenariam.

Voz 1 -- É tudo quanto o réu tem a declarar?

Homem -- (Prosseguindo) A quem pertencia o revólver? Os senhores me azucrinaram com estas perguntas idiotas: a quem pertencia o revólver? Por que foi limado  o número de série do revolver?

Repito aqui o que já disse antes, na polícia: eu não sei o nome da família proprietária do revólver. Talvez um membro proeminente dessa família esteja aí entre os jurados. Talvez não. Isto, porém, é irrelevante. Certo é que eu matei. Certo é que o rapaz não me disse, antes, o nome dele. A mulher também não me disse nada a respeito de nomes, e eu não tinha, não tenho e nem terei, no futuro, a menor necessidade de fazer indagações a respeito de nomes. O que eu sei é que o rapaz e a mulher tentaram fugir com o revólver, mas eu interferi, e interferi com violência. Graças a isto pude, depois, usar o revólver e usei-o com técnica. Quando VABUR se transformou em senhor da guerra,  eu aprendi  perfeitamente a técnica de matar com um mínimo de gastos. No entanto, a verdade é que ao apertar o gatilho eu não me recordei do tempo em que fui Senhor da Guerra e sim à memória me vieram muitos dos episódios que vivi na Fazenda do meu avô (Pausa. Narrando com certa melancolia) Em menino e adolescente eu vivi com meu avô. (Voz grave) Para meus pais eu era um estorvo, era uma sequiosa boca a mais, era um espião de suas intimidades de alcova, e então eles me entregaram ao meu avô. Terei falado sobre meus dias de infância e adolescência vividos na Fazenda de meu avô? (Pausa) Terei dito algo sobre isto? (Pausa) Respondam-me!

Voz 1 -- Ao réu não é deferido o direito de formular indagações!

Homem -- É possível que eu não lhes tenha dito nada sobre a Fazenda do meu avô. Eu devo, porém, fazê-lo. Tudo permanecerá às escuras se eu não falar de alguns episódios daqueles tempos, especialmente se eu não falar sobre a morte do cavalo. O cavalo se chamava Roxinho. Era um belo e poderoso animal. De noite, Roxinho na estrebaria, meu avô ia vê-lo, gostava de admirá-lo, e eu acompanhava meu avô. Era com ternura que nós o olhávamos. Porque estávamos sozinhos, não tínhamos medo de a nossa ternura tornar-se ridícula diante dos outros. Permanecíamos 15, 20, às vezes 30 minutos, a espiá-lo e Roxinho, como que compreendendo a nossa alegria, fazia-se alegre também, espichava-se elegantemente, os olhos a faiscar de contentamento. Desgraçadamente, eles já morreram, meu avô e Roxinho, já morreram, estão além e muito além das construções metálicas do mundo, além do mar e da terra, mas me  legaram memórias e eu valorizo cada uma dessas memórias. Meu avô poderia ter dito -- e talvez o tenha feito -- que nada humano lhe era estranho. Eu não lhe era estranho. Roxinho não lhe era estranho. Uma manhã, ouvi o barulho de um tiro de carabina. De repente, aquele tiro de carabina. E então eu corri e encontrei meu avô junto ao cavalo caído no chão. O cavalo, Roxinho, ainda sangrando, estava morto. Meu avô o matara. Com a carabina, um tiro apenas, um tiro desferido com toda a técnica, ele matara Roxinho. Eu me atirei contra meu avô, a chutá-lo, a bater-lhe na cara, a chamá-lo de assassino, de mentiroso. Eu disse: “o senhor o odiava e eu acreditava que o senhor o amava tanto quanto eu, e o senhor o matou, o senhor é um monstro! é um monstro! é um monstro! Estas palavras, monstro, assassino, assassino, monstro, eu as repeti inúmeras vezes, e eu chorava, chorava muito, chorava...”

Voz 1 -- Este tribunal não estabelece a relação que possa haver entre o fato subjúdice, ou seja, o assassinato cometido no jardim, e a história que o réu está a contar.   

            Homem -- Algemou-me! Deveria ter-me ajudado a cavar o túmulo, e, no túmulo, com cuidados especiais, depositar o corpo, depois cobri-lo com terra e sobre a terra colocar flores e folhas. Pois bem: não fez assim. O  imbecil  algemou-me!

Voz 2 -- Meritíssimo: a defesa pede a palavra. Trata-se de uma questão de ordem pertinente e oportuna.

Voz 1 -- Com a palavra o advogado da defesa.

Voz 2 -- De modo a instruir um recurso à Instância Superior...

Homem -- Eu não quero recurso de espécie alguma. Não me prestarei a uma nova farsa. Porque amanhã, ou na próxima semana, ou no ano que vem, Ele, Ele a quem desconheço e a quem designo arbitrariamente como VABUR, Ele poderá fazer com que eu me transforme num  Morcego, ou talvez me trans-forme numa Centopéia, e assim escaparei, uma vez que não há celas que possam aprisionar centopéias  ou  morcegos.

Voz 2 -- (Calmo, no mesmo tom de voz) Na opinião da defesa, Meritíssimo, a declaração do réu configura um estado de insanidade mental mais do que evidente. A defesa re-quer, por isso, que as declarações do réu sejam fielmente reinscritas e...

Homem -- (Gritando e voltando-se para o local de onde partiu a voz) -- Você é uma besta! Entenda, imbecil, entenda: eu sei que Ele que VABUR... Oh! não me adianta tentar explicar nada. Vocês todos são incapazes de entender o que se passa. Eu próprio pouco entendo. Nós somos bonecos nas mãos de VABUR. Ele nos usa a todos, a mim, (aponta para a platéia), aos senhores, a vocês todos e a cada um de vocês, vocês não o sabem mas Ele os utiliza e se vocês me perguntarem quem Ele é, quem é VABUR, tudo o que posso responder é que não sei como defini-lo. Dei-lhe um nome: VABUR! VABUR!, mas não sei como defini-lo. Nosso vocabulário é pobre. Para defini-lo são paupérrimos os vocabulários de todos os idiomas do mundo. Deus, é assim que alguns o chamam. Outros preferem designá-lo como Diabo. E eu sei que Ele não é Deus e não é também o Diabo, inclusive porque Deus e Diabo não passam de figurações que Ele próprio incorporou ao imenso elenco dos nossos medos reunidos. Suspeito que Ele, VABUR, seja o resultado de todos nós amalgamados, o que hoje somos, o que ontem fomos, o que seremos amanhã, até o dia em que tenhamos vencidos todos os medos e ódios, e mais a cupidez e mais a inveja,  todos os sentimentos mesquinhos que nos habitam, até o dia em que não mais tenhamos nojo da nossa condição humana, e hajam desaparecido as polícias, os exércitos, os tribunais, o absurdo de todas as comissões técnicas e cheguem os dias de...

Voz 1 -- Silêncio. Isto é subversão!

Homem -- ... cheguem os dias de pães e rosas multiplicados para todos...

Coro -- Subversão! Subversão! Subversão! (Coro não cessa de gritar cadenciada-mente: sub-ver-são!)

Homem -- (a voz se sobrepõe ao coro)... dias de paz, dias em que a ternura não será mais ridícula, dias em que cairão os marcos e as fronteiras, o Grande Dia do Sol Universal.

Voz 1 -- (ouve-se ainda o coro) -- Silêncio: (coro silencia) Este Tribunal exige silêncio!

Homem -- (Voltando-se para o local de onde partiu Voz 1) -- Você é um boneco idiota! (Voltando-se para outra parte  do palco, onde presumivelmente estariam os jurados) Vocês todos são igualmente uns bonecos idiotas, estúpidos e idiotas!

Voz 1 -- Calem este homem! Calem este homem!

Percebe-se que o homem é arrastado. Com violência alguém lhe tapa a boca. O homem desaparece na escuridão. O foco de luz incide agora, sobre o chão vazio. De repente, luzes. Um jardim. A mulher está sentada, uma sacola no chão. É uma mulher aparentando de 20 a 30 anos. Nela se nota algum desalento. O rapaz se aproxima da mulher.

Rapaz -- Por favor, o nome da senhora é Senhorita?

Mulher -- Sim, como você descobriu?

Rapaz -- Sou irmão dele.

Mulher -- De quem?

Rapaz -- Do que levou a senhora ao concurso de danças. A senhora ainda se lembra dele?

Mulher -- Senhorita, por favor, Senhorita...

Rapaz -- Recorda-se dele?

Mulher -- Você não se parece com ele. Em nada. Não é estranho isto? Não é muito estranho que um irmão seja tão diferente de outro irmão?

Rapaz -- Somos, de fato, eu e ele, dessemelhantes em tudo. Eu nunca teria levado a senhorita àquele concurso de danças. Aliás, eu acho que isso de dançar é grotesco: um homem e uma mulher, em meio a muitos homens e muitas mulheres, que se põem a executar movimentos ridículos. Eu tenho profundo senso de ridículo. Demais a mais, dançar é uma lamentável perda de tempo.

Mulher -- Não é necessário que você insista na dessemelhança. Eu a percebi logo. Seu irmão é delicado, gentil, cheira a sândalo; você ao contrário, tem um cheiro esquisito, um cheiro a me lembrar grosso volume sobre técnica contábil ou sobre Direito Comercial Marítimo, com índice remissivo e profusas notas pé-de-página. Me perdoe a franqueza, mas você cheira a bolor.  

Rapaz -- (Controlando-se) Pouco importa o que seu olfato diga ou não ao meu respeito. Vim aqui com dois objetivos: avisar que meu irmão não comparecerá ao encontro  e pedir de volta o revólver que ele lhe entregou. (Com certa alegria) Isto a entristece?

Mulher -- Não sei o que seja tristeza, jovem. Se já soube, no passado, esqueci como é mesmo essa coisa que vocês chamam tristeza. De qualquer modo sinto certo desapontamento. Como se eu esperasse o trem e o trem me faltasse. Eis tudo: seu irmão me faltou. Eu lhe pedira pouco, pedira que me fizesse um pequeno favor. Prometeu-me que viria a este jardim e que me faria o pequeno favor.Você diz que ele não virá. Eu acredito. Tudo o que me resta é aguardar quem me possa fazer o pequeno favor. Esperarei. Acostumei-me a esperar. Há meses, há anos que espero. Diga-lhe isto.

Rapaz -- Agora, por obséquio, dê-me o revólver.

Mulher -- Dar o quê?

Rapaz -- O revólver.

Mulher -- Por que eu iria devolvê-lo? A título de quê?

Rapaz -- Muito simples: o revólver não lhe pertence. É uma propriedade legítima de minha família. Nós o compramos, nós o registramos como a Lei determina, nós o temos cuidado. Assim, portanto, ele nos pertence. Devolva-o.

Mulher -- Não. Concordo com uma coisa: o revólver não me pertencia. Admito isto. Sim, não me pertencia. Agora, porém, depois de tudo o que aconteceu, o revólver passa a me pertencer por direito de conquista, e esse direito vai durar algum tempo...

Rapaz -- Chamarei o guarda. A senhora não me deixa outra alternativa.

Mulher -- Não posso impedi-lo. Vá, chame o guarda. É seu direito chamar o guarda. Vá, chame-o. Eu, de minha parte, contarei toda a história do concurso de dança, o que se passou antes, o que se passou depois. Já estou até lendo as manchetes dos jornais: -- “Rapaz e mulher, batidos pela vida, resolvem morrer juntos, mas rapaz se acovarda no último minuto!”.

-- Sensacional: covardia de um jovem desfaz no último momento um pacto com a morte ““.

E então? Vá, chame o guarda!

Rapaz -- (Hesitante) -- Na verdade, meu pai não me deu instruções para eu chamar  o guarda. Ele exigiu que eu a tratasse bem. Minha missão é   a de persuadi-la e não a de impor meu ponto de vista. Compreenda: inquieta-nos muito saber que a senhora morrerá.

Mulher -- Senhorita...

Rapaz -- ...que a senhorita morrerá usando o revólver que pertence à nossa família.

Mulher -- Compreendo, perfeitamente, o escrúpulo de sua amada família.

Rapaz -- Penso que poderemos  chega  a  um  acordo.

Mulher -- Claro que sim! Claro que poderemos fazer um acordo. É tudo muito simples: honre o compromisso de seu irmão, mate-me e leve de volta o revólver... Eis tudo.

Rapaz -- Por que você mesma não se mata? Eu vou ali espiar se há gente por perto, você se mata com uma bala entrando pela boca, eu apanho  o revólver... Percebeu?

Mulher -- Você é um estúpido!

Rapaz -- Você admitiu o acordo. Então você fez uma proposta, eu fiz outra e assim criamos as bases de um acordo. Um acordo é sempre o produto de teses que a princípio se chocam e que depois se fundem. Tese, antítese, síntese.

Mulher -- Você é um letradozinho de merda! Eu não posso me matar. Se eu não respeitasse muito meus princípios religiosos, é claro que já me teria matado há muito tempo e não mais estaria a estragar meu latim com tipos como você.

Rapaz -- Estamos num impasse.

Mulher -- Você, eu não. Eu estou numa espera.

Rapaz -- Não sei o que fazer. Preciso de instruções.

Mulher -- (Segura o rapaz que começa a se afastar) Não se vá, por favor. Lembre-se que um revólver é sempre um revólver. Há muitos usos para um revólver. Se amanhã sua noiva ou sua esposa resolver traí-lo, você necessitará do revólver para matá-la, assim defendendo sua honra de macho. E os ladrões? Como você poderá se defender dos ladrões, dos tarados, dos assassinos sem um revólver de boa marca? E há ainda as convulsões sociais, não se esqueça disso, e as convulsões sociais penetram todos os lares  e então para você defender seu amado lar será necessário um revólver, um bom revólver. Eu poderia fazer um longo discurso sobre a importância de objetos como o revólver, inclusive porque ele pode servir de quebra-galho, ou seja, ser empenhado numa Caixa Econômica qualquer. Mas me limitarei a avisar que você poderá perdê-lo para sempre se não o recuperar agora. Mate-me logo e torne-se livre para retomar o que pertence à sua família. Seja homem! Seja macho! Defenda os direitos de sua família! Vamos, seja  homem!

Rapaz -- Não se trata de ser homem ou não ser homem. Trata-se de que eu não tenho instruções a esse respeito. Se meu pai me tivesse dito: mate a mulher e traga o revólver, certa-mente que eu a mataria. A esse respeito ele não me disse nada. Necessito de uma orientação adicional. Preciso ir. Preciso ver meu pai. Solte-me, preciso ir!

Mulher -- (Ainda segurando o rapaz) -- Você tem mesmo o jeito de um fresco, de um veado! Você é um veado!

Rapaz -- (Esforçando-se para que a mulher o liberte) -- Preciso ir! Me solte.

Mulher -- (Ainda segurando o rapaz) -- Desde o primeiro minuto em que o vi eu disse para mim mesma: este sujeito aí é um fresco! É um fresco! (Rapaz se solta, vai abandonando a cena)  É um fresco! (Mulher eleva a voz) Você é um fresco, é um estúpido Veado! Veado! Veado! (Rindo) Eu não sei gritar. É horrível isso de eu não saber gritar. Desde muito cedo ensinaram-me várias coisas: não incomodar os vizinhos, não agravar os pais, não gritar, não cometer adultério, não jurar em falso, não recorrer ao suicídio, não isso, não aquilo, e eu aprendi tudo o que me ensinaram. Por isso é que agora quero gritar veado! veado! e nada consigo além desta voz rouca. Agora compreendo melhor o que aconteceu: Todas as ordens me penetraram fundo, se apossaram de mim, entraram pelo nariz, pelos olhos, pela boca, pelos ouvidos, entraram...

Mulher pára de falar quando percebe que Homem se aproxima. Ele se veste, tal como a mulher, modestamente. Mostra-se espantado diante do que vê: as árvores, as flores, a própria mulher. Há certa alegria nesse espanto.

Homem -- Perdão, há eucaliptos neste jardim?

Mulher -- (Surpreendida) -- O quê?

Homem -- Eucaliptos. Eu julguei que nesta parte do jardim existissem numerosos pés de eucaliptos.

Mulher -- Não, o senhor julgou mal. Eu conheço cada pedaço deste jardim e posso assegurar que nele não há pés de eucalipto. Este jardim tem apenas duas peculiaridades: os homens são raros e são muitos os veados. Nesse instante um veado esteve aqui mas já foi embora. O senhor gosta de veados?

Homem -- Detesto-os.

Mulher -- (Provocativa) O senhor gosta de eucaliptos...

O senhor adora eucaliptos...

Homem -- Não se trata de adorar ou não adorar. Eu preciso de purificar meus pulmões e para isto nada melhor que o ar perfumado com eucalipto.

Mulher -- É fácil: o senhor irá a uma farmácia ou a um super-mercado e comprará um aerosol com cheiro de eucalipto. No concurso de danças, ontem, porque havia uma catinga miserável, o produtor usou inúmeros aerosóis perfumados e salvo engano um deles tinha cheiro de eucalipto.

Homem -- Eu tenho horror a produtos químicos e por razões muito fortes... Bem, bom dia pra senhora, devo procurar outro jardim. Perdoe se eu a interrompi, senhora.

Mulher -- Senhorita, diga Senhorita. Eu não sou senhora nem madame.

Homem -- Eu não pretendi ofendê-la.

Mulher -- Eu não me sinto ofendida.

Homem -- Então, ótimo. Adeus.

Mulher -- (Com delicadeza, segura-o) -- Eu apenas informei que não sou senhora nem madame e isto não é difícil de entender.

Homem -- Não, não é difícil.

Mulher -- Não obstante, para impedir que o senhor construa um juízo errado a meu respeito, informo que embora sendo Senhorita eu não sou mais virgem. Isto o escandaliza?

Homem -- Não, de modo algum. Sequer me escandaliza que ainda existem virgens quando a Ciência vem de introduzir em seus altares a sua mais nova deusa: a Pílula. Não, nada mais me escandaliza. Há muitos anos que nada neste mundo me escandaliza (Senta-se ao lado da mulher) Você me fez uma confidência bem mais interessante: até ontem, à noite, eu fui uma barata.

Mulher -- Foi o quê?

Homem -- Uma barata.

Mulher -- Como é que é mesmo?

Homem -- Fui uma barata.

Mulher -- (Rindo) -- Era o que faltava: primeiro um covarde, depois um veado e agora um gozador.

Homem -- (Severo) -- Uma barata, foi o que eu disse. Uma barata. Durante quase um mês eu fui uma barata e ao acordar, hoje, era de novo um ser humano, assim como agora me encontro, com cabeça, tronco e membros. (Mulher continua rindo, algo entre riso e surpresa) Por isso é que eu preciso de um ambiente com o purificador cheiro do eucalipto. É necessário que a senhora saiba, no entanto, que mesmo quando eu fui barata, em nenhum momento deixei de pensar como ser humano. Foi uma experiência horrível. É horrível ser barata e pensar como um ser humano.

Mulher -- O senhor me diverte. (Sempre rindo) O senhor é muito engraçado.

Homem -- Mesmo quando percorria os esgotos da cidade eu pensava como um ser humano.

Mulher -- (Como se não tivesse ouvido a Mulher) -- E tudo por culpa d'Ele, VABUR! Antes d'Ele me transformar numa barata trans-formou-me num general da classe dos mais belicosos, um Senhor da Guerra (Mulher ri um pouco mais alto), e depois me fez boxeur, mas de tudo o pior foi ter sido barata. É terrível dormir como gente e acordar transformado numa barata. Meu nariz ainda está cheio da poeira dos assoalhos velhos e dos miasmas dos esgotos. Como barata é que vi quanta podridão há sobre e sob esses luxuosos edifícios de apartamentos, essas luxuosas mansões, e como estão para sempre perdidos os velhos pardieiros. Estive em toda a parte, como barata. Vi a face da desgraça humana: é de meter medo, mesmo a mim que fui senhor da guerra. É de meter medo.

Mulher -- (Rindo muito, um riso rouco) -- O senhor é mesmo muitíssimo engraçado!

Homem -- A senhora não acredita?

Mulher -- (De repente, cessando o riso) -- Senhora, não. Senhorita.

Homem -- Isto não tem importância, isto não tem nenhuma importância.

Mulher -- O que não tem importância?

Homem -- A senhorita me compreenda, mas é pouco significativo ser senhorita ou não ser senhorita, ser madame ou não ser madame, ser virgem ou não ser virgem. Importante é ter sido barata ontem, hoje de novo ser gente (mulher recomeça a rir) e como gente redescobrir tudo e nesse redescobrir começar a entender que Ele, VABUR, deve com urgência ser identificado e destruído. Sabe inclusive por quê? Porque VABUR faz com que você pareça uma pessoa humana, e, no fundo, a rigor, você não é uma pessoa humana, é somente um projeto. Comigo, de raiva, Ele fez mais: transformou-me num bicho monstruoso! (Mulher ri muito) De que a senhora ri? É de mim que você se põe a rir como uma louca?

Mulher -- O quê? O quê?

Homem -- A senhora não acredita que ontem de noite eu era ainda uma barata? A senhora não crê que eu...

Mulher -- (Ainda rindo) -- Senhorita, por favor, senhorita...

Homem -- Ouça-me: ainda que possa parecer um ab-surdo -- é mesmo um absurdo   -- eu fui uma barata. Eu não minto. Pare de rir! (Agarra a mulher. Aperta-lhe os braços. Ela continua a rir) Escute: eu não ri da confidência que você me fez e você me deve a gentileza de ouvir a minha confidência. Eu a escolhi para ouvir esta confidência e você tem o dever de ouvi-la. (Mulher aos pouco pára de rir. Agora, inclusive porque ele aperta mais os braços, ela parece disposta a ouvi-lo) Sim, eu fui uma barata, acredite. Eu fui mais do que uma simples barata. Eu fui um inseto imundo e monstruoso, uma baba marrom a me escorrer da boca e aquilo não era boca, nem eram as presas dignas de um animal decente, era uma coisa estúpida, e de manhã, no quarto da casa de meus pais, de manhã, sim, de manhã, quando u quis voar para que meus pais não vissem o filho trans-formado num bicho monstruoso, quando eu quis voar as asas não se abriram o suficiente e eu caí no chão (mulher quer controlar o riso), caí com as patas para cima e porque caí meu pai percebeu que algo de estranho havia acontecido e foi ao meu quarto e me viu assim, caído, com as patas para cima (mulher já não pode controlar o riso), aquelas patas... (Para a mulher) Pare este riso, páre! Páre de rir! (Mulher  continua rindo) Burra! Puta! Vagabunda! (Homem começa a andar, sua intenção é a de deixar o jardim. Mulher segura-o)

Mulher -- Por favor, não vá embora.

Homem -- Você é uma burra!

Mulher -- Sim, sou uma burra, sou uma burra.

Homem -- Uma Puta!

Mulher -- Sim, sou uma puta, mas, por favor, não vá embora, eu prometo acreditar em tudo, eu juro que acreditarei em tudo. Eu não quis melindrá-lo.

Homem -- Eu preciso de um outro jardim, um jardim onde hajam numerosos pés de eucalipto.

Mulher -- Não se vá, pelo amor de Deus, não parta. Eu preciso de pedir ao senhor um pequeno favor, ao senhor que já foi general  e boxeur, eu preciso de um pequeno favor, nada mais do que um pequeno favor. Insisto em dizer que não havia agravo em meu riso. Eu ri porque de repente me lembrei que ontem, enquanto o senhor era uma barata, eu era uma égua, no concurso de danças fiz o papel de uma égua.

Homem -- Reconheço que a senhora tem imaginação, mas isto me comove pouco. A senhora agora se faz de gentil e exagera. De resto, falando com toda a franqueza, é meu desejo ficar só, apenas com natureza pura em torno de mim, as árvores, a terra, o céu, o ar limpo. Foi por acaso que encontrei a senhora neste jardim...

Mulher -- Senhorita...

Homem -- Um simples acaso, senhorita. Eu procurava, como já disse, um jardim com pés de eucalipto.

Mulher -- (Tentando interessá-lo) Diga-me: quando o senhor era barata o senhor se reocupava em encher os pulmões com ar  perfumado.

Homem -- (Cedendo à tentação do tema proposto) -- Uma barata, minha senhora, uma barata comum não tem pulmões, não tem olfato, é cega. É natural que você seja tão ignorante em relação às baratas. Aliás, admito, as baratas comuns são profundamente ignorantes em relação a elas próprias. Posso dar, a respeito, um testemunho de cátedra: convivi com elas, estudei-lhes os hábitos. A ignorância que mostram é uma ignorância natural, isto porque as baratas comuns não têm o sentido da História. As baratas são sempre baratas  e cada vez mais baratas, enquanto que os homens se modificam.  Quando as baratas conflitam entre si, e isto é raro, as armas que usam são as  armas do     seu próprio corpo. Arranham-se, chocam-se doidamente. Esbatem-se pelas paredes. Os homens, não. Os homens evoluíram das lanças até a idade da bomba atômica limpa, quero dizer: sem excessiva radioatividade. Hoje, graças à técnica, a bomba atômica destrói apenas localmente os Exércitos e as populações civis, preservando monumentos históricos como o Kremlim, o Arco do Triunfo, a Estátua da Liberdade. Este um dos aspectos das diferenças entre os homens e as baratas. Eu poderia, se tivesse tempo, e sem modéstia, dar uma aula a respeito desse tema, e com conhecimento de causa: porque fui uma barata mas não fui uma barata comum. Daí porque não cheguei a ser uma barata integral. Mas, de outra parte, por questões de exterioridades, não era  um ser  humano.

Mulher -- Este não foi meu caso.

Homem -- Que caso?

Mulher -- Estou falando do concurso de danças.

Homem -- Você é muito confusa.

Mulher -- Ouça, ouça: eu participei de um concurso de danças mas meu exterior não  foi o de uma égua. Eu continuei sendo eu mesma, mas fiz posturas de uma égua, se é que afinal o senhor me entende. Ou ainda melhor: eu fiz o que a égua faria se a uma égua fosse dado a oportunidade de participar de um concurso de danças.

Homem -- Entendo: você desempenhou o papel de uma égua.

Mulher -- Exatamente. Não é que eu tenha sentido alegria em fazer o papel de égua. Isso decorreu de uma exigência do organizador do concurso.

Homem -- A  comissão técnica do concurso.

Mulher -- Exatamente: havia uma comissão técnica e essa comissão técnica marcava pontos. Na verdade o concurso estava bastante chato. Cada vez mais as cadeiras se mostravam vazias, sem os pagantes. Por isso é que eu penso que o patrocinador do concurso teve  lá suas razões e exigiu do organizador que movimentasse a coisa. Então, o organizador, homem de idéias novas, decidiu que as dançarinas se trans-formariam em éguas e que os dançarinos fariam como os jóqueis fazem: trepar nas éguas. E eles treparam, claro: E fomos todas devidamente trepadas! Aí então o público achou que aquela idéia era mesmo sensacional e voltou a prestigiar o concurso, e eu acho que o público teve suas razões: é mesmo o caso de se pagar para ver muitas senhoritas correndo como éguas, relinchando como éguas, os traseiros bem para trás, como são de ordinário os trapeiros das éguas (Ri) Não é mesmo o caso da gente rir?

Homem -- A idéia não deixa de ser divertida.

Mulher -- (Cessa o riso, de repente) -- Não creia, porém, que minha necessidade de morrer com urgência tenha surgido no concurso.

Homem -- Necessidade urgente de quê? De morrer?

Mulher -- Exatamente: tenho urgentíssima necessidade do morrer. O senhor se escandaliza? (tentando ser persuasiva) O senhor não tem o direito de se escandalizar. Quem já foi General belicoso, quem já foi boxeur, quem já foi barata não se pode escandalizar porque uma senhorita precisa de uma morte urgente.

Homem -- Nada no mundo me escandaliza.

Mulher -- Vê-se que o senhor é um homem, um grande homem. Escute, por favor, escute:

“À beira do abismo, onde desaparecerás,

Contempla, ainda, a rosa, escuta a canção”.

Se a mim me faltam rosas e canções, resta-me o consolo do olhar de frente para um homem, um grande homem!

Homem -- Percebo que a senhora tenta ganhar minha simpatia com tais elogios. Seria mais prático que tentasse explicar a necessidade urgente de sua morte. E com poucas palavras, por obséquio. Seja breve.

Mulher -- (Como que retomando o fôlego, convencida de que seu ardil não funcionou) -- Vem de muitos anos essa necessidade de morrer e agora é  irreprimível. Talvez tudo tenha começado quando, no Sanatório, há 10 anos, eu tive piedade de um homem maluco que se julgava uma árvore e se cria a desfolhar-se, um enorme flamboyant canceroso, a apodrecer por dentro e por fora, ele, o homem que se julgava uma árvore.

Homem -- A senhorita está tentando uma nova comparação e ela é falsa: eu não me julguei uma barata, um general belicoso, um boxeur. Eu fui, de fato, general, barata e boxeur. Esse homem de que você fala apenas se julgava uma árvore. Não era. Se julgava. Trata-se de uma simples presunção.

Mulher -- Exatamente: ele se julgava e eu me apiedei dele...

Homem -- (Sem ouvi-la) Eu fui, de fato, uma barata, uma repugnante barata...

Mulher -- (Sem ouvi-lo)... e um dia ele me pediu assim “deixe -- ele pediu -- deixe que um dos meus galhos  penetre você, um dos meus galhos ainda vivos, porque os outros apodreceram...”

Homem -- ... acordei sem braços, sem pernas, quis voar e não pude e aquele puto daquele meu pai, afinal desmascarado, de repente surgiu no quarto...

Mulher -- ... no Sana-tório, foi lá que aconteceu, no Sanatório, a primeira vez que me internaram, eu tinha 20 anos, eu  estava sozinha, desesperada, batida pela vida, sem nenhuma bebida, sem nada que me fizesse dormir, é horrível não poder dormir, sem dormir as memórias de dor nos assaltam, e a mim, naqueles meus 20 anos, somente havia memórias de dor, e eu não dormia, eu não conseguia dormir...

Homem -- ... e vi-me ali, naquele chão, impossibilitado de voar, e eu queria voar, queria fugir de meu pai e de minha mãe, para que eles não me vissem, mas caí no chão e fiz ruído e meu pai veio e gritou quando me viu e quis me matar com a vassoura e então eu corri, meti-me no esgoto, escapei pelo esgoto.

Mulher -- ... e Ele veio (Homem se põe a ouvi-la), o homem-árvore, de novo pediu que eu abrisse as pernas e eu abri as pernas e eu deixei que ele me penetrasse.

Homem -- (Surpreso)  Ele o quê?

Mulher -- Me penetrou, permiti que me penetrasse, ele me penetrou profundamente, me sangrou e em mim começou a  nascer  o  menino-morto.

Homem -- Ele é um pedaço de VABUR! Não há nada estranho nisso. Ele é um pedaço de VABUR.

Mulher -- Quem é VABUR?

Homem -- Deus, O diabo, ou os dois juntos, ou nenhum dos dois, ou ainda os dois fundidos  e  mais  todos  nós.

Mulher --  Blasfêmia! O senhor blasfema contra Deus!

Homem -- (Gritando) Você é louca! Sua cabeça está podre! Você é louca!

Homem quer sair. Mulher segura-o. Faz com que ele se sente.

Mulher -- Não, eu não sou louca, eu nunca fui louca, acredite em mim, pelo amor de Deus, acredite em mim. Jogaram-me no Sanatório porque eu estava a beber demais. Porque eu precisava de dormir eu bebia demais. Se eu não bebesse, eu não conseguia dormir. Você culpa  seus  pais?

Homem -- Culpo-os.

Mulher -- Eu não culpo meus pais. Não os culpo porque eu também aceitei a idéia deles e vim para a cidade-grande. Eu era professorinha leiga, ganhava  menos do salário mínimo e fazia poesias líricas. Falava do meu bem amado distante, meu bem amado nas nuvens azuis. Oh! sim, eu era uma garota de 20 anos, era simples, tudo o que desejava era estudar de noite, ser bibliotecária, guardar um pouco de dinheiro, me apaixonar por um rapaz direito, com ele casar, um rapaz trabalhador, sério, de hábitos morigerados, mas nunca me apareceu um rapaz sério, ou talvez tenha aparecido e dele eu não me tenha apercebido, e tudo estava podre, em torno de mim tudo estava podre, e eu então desesperei e eu então também apodreci, mas não soube dissimular as mercas  que a consciência apodrecida imprimiu na minha cara e eu disse isso ao Padre-Confessor, disse que precisava de beber muito para dormir, e o Padre-Confessor comunicou à Polícia e a Polícia me levou para o Sanatório (Pausa. Mulher respira de modo ofegante. Homem  parece querer falar, ela o impede) Cura! Cura! Foi isso o que me prometeram solenemente: “você será curada”,   disse o médico. “Você não beberá nunca mais”, o médico afirmou. Uma zorra que me curaram! Uma zorra! Isto é o que eu quero que o senhor entenda: não me jogaram no Sanatório porque eu fosse uma louca e sim porque eu era alcoólatra. Eu nunca fui louca. Ele, sim, o homem-árvore, ele era louco, estava a morrer, se desfolhando, e muito insistiu... Compreenda isto: ele insistiu demais, insistiu muito, e então eu me apiedei dele e então em mim ele depositou a semente  do menino-morto. Aquele-menino-para-sempre-morto /// aquele-menino-para-sempre-morto (Homem se levanta,  enfarado. De novo a mulher o retém) Não me deixe, por favor, não parta, permaneça comigo. O senhor é um homem pode-roso, já foi general, já foi boxeur, até ontem o senhor era uma altiva e digna barata dotada dos melhores sentimentos humanos, e um homem assim bem que poderá me fazer um pequeno favor, o menor de todos os favores, o favor de uma  piedade  ativa.

Homem -- Por uma questão de princípio, eu não tenho nenhuma obrigação de fazer favores pessoais. Na minha atual condição de Grande Contestador,  meu compromisso abarca a humanidade inteira e não me preocupam problemas de pessoas ou grupos  isolados. Se, por ventura, eu tivesse pensando hoje como pensava no tempo em que fui boxeur, então, sim, eu lhe faria este pequeno favor, que, aliás, nem imagino qual seja. Isto porque, durante algum tempo, enquanto boxeur, eu tinha mania  de  espalhar alegria  pelo mundo  afora. Sem saber quais os benefícios das alegrias distribuídas, eu as prodigalizava. Eu era, então, Pablo Cortez, boxeur, distribuidor de alegrias. Até que não é mau lembrá-lo. De algum modo, sabia disso, eu me sinto alegre quando recordo o  tempo em que me comprazia a distribuir alegrias. Foi, de fato, um tempo interessante.

Mulher -- É imperioso que o senhor me ouça, compreenda o meu ponto de vista. Lá no sanatório...

Homem -- (Sem ouvi-la) -- Quando Ele, VABUR, me fez boxeur, e Ele, VABUR, talvez que com muita perversidade, fez com que eu voltasse a pensar como pensava nos dias românticos da Faculdade, aquele tempo em que eu me julgava um jovem construtor-de-auroras e foi como boxeur-construtor-de-auroras que eu fui lutar em Lima, capital do Peru...

Mulher -- (Sem ouvi-lo) --  ... foi por acaso que encontrei o homem-árvore. Ele me disse que estava a morrer, que se desfolhava...

Homem -- (Sem ouvi-la) -- ... meu pai era meu segundo e me olhava com gula, com lu-xúria, e como que me pedia: “esmague esse uruguaio, mate-o, estraçalhe-o”.

Mulher -- (Sem ouvi-lo) -- ... “abra as pernas”, o homem-árvore pediu, e então...

Homem -- (sem ouvi-la) -- ... o uruguaio veio gingando, bancando de bacana, e então...

Os dois falam no mesmo tempo, pouco se entende o que dizem, fazem gestos, e a uma só voz gritam VUP! A  mulher leva a mão ao rosto,   sem exagero. O homem recolhe o braço que estendera, como se houvesse dado um soco. O homem volta  a  ser  entendido.

Homem -- ... meu pai ficou feliz, aquele meu pai, e também eu, naquela luta, fiquei feliz, porque logo depois Ele, VABUR, fez com que eu deixasse de ser o rapaz-construtor-de-auroras e passasse a ter outra consciência, esta minha consciência de hoje, a de um Grande Contestador, e dotado dessa consciência eu aproveitei a oportunidade e cuspi gosma e sangue sobre os expectadores mais próximos do ring, especialmente os jornalistas e os membros da Comissão Técnica, porque há sempre uma Comissão Técnica (olha a mulher) porque  em toda a parte, Senhorita, há sempre essas detestáveis Comissões Técnicas (abraça a mulher, com ela se senta) e essas Comissões Técnicas exigem  que  nós  nos matemos, nós nos firamos, de acordo com o que especificam suas determinações codificadas. Tudo dentro da Ordem, da Normalidade, dos Bons Hábitos. Quer dizer: lindos massacres em cores variadas, chacinas anunciadas com a voz doce, cantante, embalativas, das garotas-propagandas. Isto me enraivece, senhorita, esta estupidez bole todos os meus nervos, ontem, hoje, e sempre, enquanto eu for um Grande Contestador em ação. Por isso tive ódio de meu pai quando ele tentou me matar com a vassoura. Por isso é que em Lima, capital do Peru, eu cuspi gosma e sangue sobre os expectadores mais próximos, sobre os jornalistas, sobre os membros da Comissão Técnica que presidia tudo. Ao vê-los sujos de baba e sangue, eu via VABUR sujo de baba e de sangue -- e então sorri.

Mulher -- Quanto a mim, confesso, eu chorei.

Homem -- (Surpreendido) Você chorou?

Mulher -- Sim, chorei muito.

Homem -- (Ainda surpreendido) -- A propósito   de que você ainda fala disso?

Mulher -- Falo das coisas que me concernem. Tanto quanto o senhor fala das coisas que lhe concernem.

Homem -- Ao julgar que você tenha podido estar em Lima, ter assistido à luta, ter chorado, eu cometi uma falta grave: fui romântico. Eu devia saber que naquela platéia ninguém teria uma lágrima para o rapaz uruguaio ou uma lágrima para mim. Porque todos gritavam, pulavam, estimulavam a sangueira imunda. Só você vendo a alegria daquele meu pai, só você vendo! Uma estupidez, foi mesmo uma estupidez.

Mulher -- Não queira me confundir. Eu não acuso meus  pais,  eu não os  culpo.

Homem -- E quando aquele meu pai morreu atropelado outros empresários me aprisionaram, anos seguidos, e uma noite um dos empresários me disse assim: “nunca serás um campeão, Pablo, nunca serás um campeão, mas serás sempre um big-show-man, um grande espetáculo”. Isto porque eu sabia apanhar, eu sabia sangrar com facilidade e é disso que as platéias gostam, gostam de sangue. Os socos mais fortes abriam-me feridas na cara, na cabeça, e o sangue escorria misturado com meu suor e todos gritavam; ainda os ouço, todos gritavam: Pablo! Pablo! Ainda hoje, ouço-os: Pablo! Pablo! Pablo!

Mulher -- O meu mal é que não me adverti para a podridão  circundante.

Homem -- Pablo! Pablo! -- gritavam. A multidão é sempre assim: identifica-se com quem  melhor sabe sangrar, com quem mais   sofre, os mártires.   A   multidão   tem um amor religioso pelos mártires e um fanatismo religioso para com os heróis e um ainda não merecido desprezo para com ela mesma. (Para a mulher) Creio ter dito uma coisa útil. A um Grande Contestador, como eu sou, o primeiro dever é o dever do diagnóstico e acabo de diagnosticar um dos erros da multidão: o desprezo que tem por  ela própria. A multidão deve dizer não mas sempre diz sim. Percebeu?

Mulher -- Eu poderia ter dito não ao homem-árvore, poderia ter dito: “você se arruíne, apodreça, morra, eu não tenho nada com você, nem com sua doença, nem com sua morte”. Mas não disse . Permiti. Deixei que aquele galho sujo me penetrasse, me inoculasse a semente do menino-morto. Depois, ele se enforcou. Talvez porque me adivinhasse profundamente ferida, Ele se enforcou. (Segura o homem, exige que ele a ouça) Ele se enforcou  você ouviu? Ele se enforcou!

Homem -- Quem?

Mulher -- O homem-árvore, ele se enforcou, Subiu numa jaqueira que havia no quintal do Sanatório, amarrou um pedaço de corda no pescoço...

Homem -- E daí? Ele se enforcou, e daí? Os dramas pessoais, repito, não me alcançam, não me comovem, são irrelevantes dentro de uma perspectiva histórica. São raros os episódios em que os dramas puramente pessoais interferem no curso da História.

Mulher -- Ouça, por favor, ouça.

Homem -- Ouça você o clamor do mundo, ouça-o esqueça esse estúpido homem-árvore.

Mulher -- Ouça, pelo amor de Deus, ouça. (A contra-gosto o homem condescende em ouvi-la) O homem-árvore amarrou um pedaço de corda no pescoço, amarrou a outra ponta no galho da jaqueira e então... Eu vi o corpo balançando e vi quando os eficientes funcionários do Sanatório trouxeram-no a terra e foi  então que pela primeira e última  vez eu o beijei, e o  beijei  com  ternura.

Homem -- Quantas vezes, com a força de sua imaginação, você beijou as 70 mil faces dos mortos de Hiroshima e Nagasaki? Quantas lágrimas de dor você verteu em homenagem aos 40 milhões de mortos da segunda guerra mundial? Que vale um homem-árvore diante da tragédia de milhões de pessoas famintas, morrendo  a  cada  minuto?

Mulher -- Não obstante sua loucura, ele era o único ser normal naquele Sanatório e por isso eu o beijei. Oh! sim, eu o beijei prolongadamente (com as duas mãos segura a cabeça do homem, para que ele permita o beijo na testa, mas o homem reage, a princípio com energia, logo em seguida timidamente, afinal cede). Oh! por favor, se deite aqui, deite-se, permaneça como um morto, tranqüilo e quieto como um morto...

Homem -- A Comissão Técnica do jardim poderia não permitir...

Mulher -- Por favor...

Homem -- E além da Comissão Técnica do Jardim  há as Comissões Técnicas da Cidade, do Estado, do País, do mundo!

Mulher -- Um minuto só.

Homem -- (É falando que ele se deita) -- Eu faço uma concessão e me deito. Será esta a primeira e última concessão que lhe faço e faço-a para que você termine de  vez com esta história tola.

Mulher -- Ele estava deitado assim, o homem-árvore, e estava morto. Havia no quintal do Sanatório, amarrou um pedaço de corda no pescoço... muita gente em torno, para vê-lo, e eu os afastei a todos (gestos), assim, assim, assim, afastei-os, e beijei o homem-árvore morto, beijei-o assim (beija o homem), e disse para ele, embora soubesse que ele não me poderia ouvir: “um beijo de sua Senhorita”. Era assim que ele me chamava: Senhorita. Ele não teve culpa de me ter ferido. Eu não tive culpa por ter permitido que ele me ferisse. Houve uma conspiração do destino. (Rapaz reaparece. É com cautela que marcha em direção ao homem e à mulher).

Homem -- Terminou a história? (Gesto afirmativo da mulher) Agora devo partir, inclusive porque não nos entendemos nunca. Eu lhe proponho temas resultantes de um mundo real e você, ao contrário, tenta me atrair para um território composto de alucinações.

Mulher -- (Segura a mão do Homem) -- Fique; peço encarecidamente que o senhor fique. Se nos esforçarmos talvez possamos nos entender a respeito de algum tema ainda não sugerido. (Vendo o Rapaz que se aproxima) Talvez em minutos coisas eu esteja distante do senhor mas com toda certeza estaremos de acordo em que esse sujeito que vem aí (aponta o rapaz) é um veado, um sórdido veado. Repare: ele tem todos os ingredientes para ser um veado e vencer triunfalmente o Concurso da Frescura Nacional.

Homem -- Você é veado, jovem?

Rapaz -- (Para a mulher) -- Trago uma proposta de minha família  e  peço...

Homem -- (Salta agilmente e agarra o rapaz) -- Eu lhe fiz uma  pergunta,  jovem,  e exijo  resposta: você  é  veado?

Rapaz -- Não. Desejo apenas que ela me devolva o revólver, é a arma que pertence à minha família, nossa única arma - e ela não quer devolvê-la.

Homem -- (Para a mulher) Ele diz que não é veado e inexistem razões válidas para que eu possa desacreditá-lo. Ele não é veado. Você mentiu.

Rapaz -- Pouco importa que ela me julgue veado ou não. Desejo somente o revólver (Para a mulher) Concordamos em oferecer à senhorita o dinheiro necessário para a aquisição de outro revólver. Uma vez aceita esta proposta, a senhorita poderá comprar outro revólver e matar-se com toda a tranqüilidade. De nossa parte retomaremos uma paz de espírito que quase perdemos graças a um momento de irresponsabilidade do meu querido irmão. A senhora aceita esta proposta?

Mulher -- Não.

Rapaz -- É uma proposta razoável.

Mulher -- Sei disso e é exatamente por isso que recuso a proposta. Eu sou sempre vítima das circunstâncias e das propostas que vocês, os das famílias que rezam unidas e permanecem unidas, consideram razoáveis. Será difícil para você entender: para mim tudo se fez de tal modo que o normal é absurdo e o absurdo é normal.

Rapaz -- Senhorita, por favor, eu quero apenas o revólver.

Homem -- O que ela diz é certo, é a primeira coisa certa, bem pensada, que ela disse até agora. (Para a mulher) Acho que estou começando a entendê-la.

Rapaz -- Cavalheiro, por favor, é tarde...

Homem -- (De novo afastando o rapaz)  Que coisa você foi?

Mulher -- Bibliotecária.

Homem -- Você nunca exerceu a prostituição com clientes da alta roda? Você nunca foi amante de intelectuais bem falantes?

Rapaz -- Cavalheiros, pelo amor de Deus...

Homem -- Cale-se! (Para a mulher) Você foi ou não foi uma prostituta de alto nível?

Mulher -- Já disse: fui bibliotecária. Você sabe o que  seja uma bibliotecária? Não, não faça jeito de quem sabe, porque você não sabe, pouca gente sabe, nem as próprias doutoras  bibliotecárias  sabem.

Rapaz -- Senhorita: preciso de  ir  jantar.

Homem -- (Para o rapaz) -- Meu filho, você pode não ser veado, mas não há dúvida quanto ao fato de você ser um chato, um chato de dimensão internacional. Você ganharia o Concurso Nacional dos chatos (Para a mulher) Vá, continue falando, você estava a se tornar  interessante.

Mulher -- Bibliotecária é toda pessoa...

Homem -- (Como se recordasse de algo, para o rapaz) Sabe porque você não ganharia o Concurso Internacional dos Chatos? Porque há certo empresário italiano meu conhecido e há ainda um certo poeta local que comete 35 sonetos por dia. Não fossem eles e você ganharia, meu rapaz, você ganharia o prêmio internacional. (Para a mulher) Fale.

Mulher -- Bibliotecária é toda a pessoa que aprisiona livros com esotéricas combinações de letras e números e esquecem os livros e se apaixonam por essas combinações. YVZ 187.345, aí está: eu digo YVZ 187.345 e tenho aprisionado um grosso volume. E nada posso com esse meu prisioneiro.

Rapaz -- (Tentando interpor-se entre o homem e a mulher)  Senhorita, aqui está o cheque, vá comprar seu revólver, devolva o de minha família.

Mulher -- Não.

Homem -- (Para a mulher)  E qual a conseqüência disso?

Mulher -- Conseqüência de quê?

Homem -- Das coisas que você disse.

Mulher -- Não há conseqüência nenhuma: eu disse apenas que não fui prostituta, que fui bibliotecária e uma bibliotecária como eu fui age daquele jeito: aprisiona os livros e não sabe como usá-los.

Homem -- Resumindo: você deu a impressão de que ia dizer coisas sensatas e terminou dizendo maluquice. Você é irrecuperável. Vou embora. Isto aqui está fedendo. Você diz maluquices e este imbecil aí fica a insistir em receber de volta um revólver que não existe.

Rapaz -- Existe!

Homem -- (Para a mulher) -- Existe?

Mulher -- Existe.

Homem -- Então devolva o revólver.

Mulher -- Não.

Rapaz -- (Com alguma esperança, para o homem) Cavalheiro, não sei quem o senhor seja, mas o senhor tem aspecto de cidadão de bons princípios e eu pediria...

Mulher -- Isto! Isto! Ótima idéia! Façamos deste cavalheiro, deste ex- general, deste ex-boxeur, deste ex-barata, façamo-lo juiz da nossa pendência!

Rapaz -- (Para mulher) Você começa por irritá-lo. Você não quer que ele decida.

Mulher -- Onde, quando e por que eu irritei este cavalheiro?

Rapaz -- Chamou-o de ex-barata.

Mulher -- (Para o homem) Isto o irrita?

Homem -- Não. Por que me  irritaria?

Rapaz -- Porque, está a se ver, o senhor nunca foi uma barata. Admito que possa ter sido um general, um boxeur valoroso, mas é uma provocação chamá-lo de ex-barata. Tanto quanto é uma provocação chamar-me de veado. Eu não sou veado, sou apenas um estudante de Direito interessado em preservar a segurança de minha família. Somos uma família unida e feliz mas agora nós nos sentimos ameaçados porque esta mulher está de posse de um revólver que nos pertence. E pensa em se matar usando precisamente esse revólver. Meu empenho, o senhor compreenda, não é o de impedir que ela se mate. Esta é uma questão que não nos diz respeito. Que ela morra, se quiser morrer, mas não envolva nossa família em sua decisão. Espero que o senhor tenha entendido nossa posição. Inclusive estamos dispostos a financiar a aquisição de outro revólver para que ela se mate quando desejar.

Mulher -- (Para o homem)  Diga a este veado se o senhor foi ou não foi uma barata.

Rapaz -- (Ignorando a mulher)  Inclusive eu devo esclarecer que estamos nos sacrificando quando oferecemos dinheiro a esta mulher. Tudo em nossa casa é planejado. Cada despesa é  anotada. Meu pai é extremamente rigoroso quanto a despesas. Ele é organizadíssimo.

Homem -- Bom, isto começa a se tornar interessante. É possível que VABUR esteja por detrás de tudo isto e eu aceito o desafio.

Rapaz -- Quem, senhor?

Homem -- VABUR, imbecil, VABUR!

Mulher -- Cale-se! Você está retardando o julgamento. (Para o homem) Estão prontas às partes, senhor, dê início ao julgamento.

Homem -- Permaneçam em silêncio. Neste momento solene eu me invisto da condição de Grande Juiz Imparcial! Necessito de um voto de confiança. Vocês confiam?

Rapaz -- Confio.

Mulher -- (Hesita um pouco) Confio.

Homem -- Silêncio! (Bate palmas três vezes) O Excelso Pretório está reunido. Inicia-se o julgamento da Grande Causa. Há, em termos de premissa básica, uma jurisprudência a ser fielmente obedecida, a qual é a seguinte: o fato delituoso ou supostamente delituoso não será examinado in abstrato e sim de uma forma concreta. Com isto quero dizer que o fato delituoso ou supostamente delituoso tem uma História e essa História deve ser narrada. Vocês estão de acordo?

Rapaz -- Estou de acordo.

Mulher -- Podemos fazer declarações preliminares?

Homem -- (Para a mulher) Deixe-se dessa empáfia de bibliotecária e responda: está de acordo?

Mulher -- Estou de acordo mas tenho um pedido a fazer: desejo que o senhor informe a este veado aí que  até ontem o senhor foi uma barata.

Homem -- Esta questão é irrelevante. O Tribunal está reunido e quando um Tribunal que se respeita se reúne somente são examinados aspectos pertinentes às causas submetidas a exame. Ou assim ou o caos. Isto, aliás é elementar. Agora exijo a atenção dos dois litigantes para uma questão de procedimento: não haverá defesas explícitas e sim acusações apenas. A defesa de cada qual se contentará implicitamente na acusação de cada um. De acordo?

Rapaz -- Sou quintanista de Direito, cavalheiro, e jamais ouvi ou li algo que dê respaldo técnico a esse procedimento.

Homem -- Técnica? Você empregou esta palavra maldita, técnica?

Rapaz -- Respaldo técnico, foi o que eu disse.

Homem -- (Gritando) Um ponto contra você. Por desrespeito a este tribunal, um ponto contra você, um ponto a favor desta mulher. 1 a 0 a favor da mulher.

Rapaz -- É injusto!

Homem -- Outro ponto contra você: 2 a 0!

Rapaz -- Eu penso...

Homem -- Pensou! Pois bem: 3 a 0. (Para a mulher) -- Conte sua história. E não pense. Pensar é crime. Não adianta protestar. Estou seguindo as regras de vocês. Fica estabelecido que pensar é crime. Exponham os fatos e só: eu decidirei. Vá, fale.

Mulher -- Para que ele ouça?

Homem -- Evidente. Ele deve acusá-la a partir dos dados que você ofereça ao acusar alguém ou alguma coisa, fulano ou sicrano, acuse-os, ou acuse fulanos e sicranos reunidos.

Mulher -- Não me ensinaram a acusar.

Homem -- Você tem que acusar ou haverá julgamento.

Mulher -- (Embaraçada) Não sei. (Animada) Eu acuso este sujeito aí de ser veado!

Homem -- Acusação rejeitada por falta de provas. Um ponto contra você: Três a 1. Prossiga.

Mulher -- A quem acusarei? Acusarei meus pais que me mandaram para este imenso hospício porque envelheciam  e já não me podiam proteger? Acusarei a mim mesma que somente tarde demais me compreendi envolvida  pela  podridão e não soube identificar os que solidariamente lutavam e lutam contra a podridão?

Responda-me: a quem acusarei?

Devo acusar o Padre-Confessor?

Acusarei a Polícia que me levou a pulso para o Sanatório?

O homem-árvore, aquele homem-árvore, deverei acusá-lo por me ter penetrado e em mim ter depositado a semente do menimo-morto?

Acusarei o médico que não quis mostrar o corpo do menimo-morto, para que eu lhe desse meu último adeus?

Acusarei o irmão deste veado porque não quis morrer comigo e depois se recusou  a  me  matar?

Responda-me: a quem acusarei?

Homem -- Acuse a todos. A mim, a ele, acuse a todos. Acuse-os. Acuse os que já morreram! Acuse os que vão nascer marcados pelos que já morreram e pelos que hoje emporcalham o mundo. Somos todos uns porcos! Estamos sujando os caminhos que a Natureza  nos  legou.

Mulher -- Não posso, não  me  ensinaram  a  acusar.

Homem -- Acuse os que se comprazem no comodismo, os que se encouraçam com a indiferença e passivamente tudo aceitam e nada contestam.

Mulher -- Não sei como acusá-los, não sei!

Homem -- Acuse os que Homem -- Acuse os que se comprazem no comodismo, os que se encouraçam com a indiferença e passivamente tudo aceitam e nada contestam.

Mulher -- Não sei como acusá-los, não sei!

Homem -- Acuse os que se acovardam! Acuse os que se locupletam com a demissão dos que fogem, acuse-os!

Mulher -- Não tenho forças, não sei o bastante, fui apenas uma bibliotecária.

Homem -- Acuse os que constroem pequenos mundos atapetados de privilégios e fazem por não ver o que se passa além das fronteiras desse mundo. Acuse os que não identificam 1.000 cadáveres misturados com as 10.000 crianças que nascem, 1.000 cadáveres que não chegaram a completar um ano de vida, 1.000 cadáveres que são entendidos como simples números num frio quadro estatísticos. Acuse-os!

Mulher -- Não posso! Eu  estou  vencida  por  dentro.

Homem -- Não diga isto!

Mulher -- É verdade: eu estou vencida por dentro.

Homem -- (Segura-a fortemente) -- Não permita que o câncer da derrota cresça dentro de você. Deixe-me ajudá-la. Ainda há tempo. Deixe-me ajudá-la.

Rapaz -- O senhor está a protegê-la. O senhor comprometeu irremediavelmente  a imparcialidade indispensável à ação da Justiça. De resto, o senhor está tentando levá-la para os desvãos da atividade subversiva .

Homem -- Cale-se!

Rapaz -- Acho que devo protestar.

Homem -- Cale-se ou eu parto sua cara. (Para a mulher) Entenda: há ainda possibilidade de auroras. Não dê tudo por perdido. Não se dê  por perdida porque há ainda possibilidade de auroras. Não será fácil, sei disso. Eu sei que a aurora que vem de uma madrugada poluída é também ela uma aurora com o estigma da poluição. Eu o sei e  isso  me entristece. Mas sei também que dia a dia, mês a mês, século a século, se torna menor o grau de poluição da madrugada. Nas ruas sem sol, permanentemente sem sol, há os que trabalham e lutam e sofrem e sonham em favor das auroras limpas. Eu assevero que sangue, canções, esperanças, suor, lágrimas, risos, eu assevero que tudo isto compactado está lavando as madrugadas e fazendo com que  cada vez mais as auroras sejam menos poluídas. Não adivinho o tempo em que teremos auroras puras parindo outras auroras puras, mas sei que isto um dia há de acontecer. E para que mais cedo aconteça, você deve acusar. Vamos, acuse! O ódio justo é também matéria prima necessária à ternura. Vamos, acuse!

Rapaz -- Cavalheiro, acho que as coisas estão a se complicar desnecessariamente. Tudo o que peço é que esta mulher me devolva o revólver. Faça com que ela me devolva o revólver, até porque eu não quero ser cúmplice dessa sua pregação subversiva.

Homem -- Petição negada. (Para a mulher) - Você  se recusa a acusar?

Mulher -- Não é que eu me recuse, é que eu não sei.

Homem -- Conte qualquer episódio de sua vida. Eu preciso de esclarecimentos. Afinal você não acordou hoje com vontade de morrer. Há condicionamentos para essa vontade e eu preciso de saber...

Mulher -- Eu poderia contar  muitos  episódios.

Homem -- Conte o último, conte com objetividade. Há acusações sempre que somos objetivos. Seja objetiva.

Mulher -- Eu posso contar o episódio do concurso de danças, senhor, mas não sei acusar. Ensinaram-me a obedecer, a obedecer sempre. Nunca o ódio se  aninhou  em  mim.

Homem -- Acuse! Este Tribunal exige que você acuse. Use a objetividade como método de acusação.

Rapaz -- O senhor se porta como um subversivo vulgar e está a torturá-la.

Homem -- (Irado, segura o rapaz com força, domina-o) Cale-se! Por  ofensa à imparcialidade deste Tribunal marco outro ponto contra você: 4 a 1. Por ter demonstrado sentimentos de piedade, reles piedade e não entendimento da essência da condição humana, marco outro ponto contra você: 5 a 1 a favor da mulher. (Empurra-o, faz com que se sente)

Rapaz -- Tudo isto aberra contra as mais simples noções do Direito e eu...

Homem -- 6 a 1!

Rapaz -- Eu exijo...

Homem -- 7 a 1.

Rapaz -- Penso que...

Homem -- (Irritado, pisando o pé do rapaz) -- 8 a 1.

Mulher -- Por favor, poupe-o.

Homem -- (Para a mulher) Um ponto contra você: 8 a 2. E não digam mais nada. Isto á começa a se tornar maçante. Mais uma interrupção e eu irei embora.

Rapaz -- Vá! Impunível é o crime quando a justiça se ausenta da consciência do Magistrado. (Homem pisa o pé de rapaz com força) Ui!

Mulher -- Não, não vá, permaneça.

Rapaz -- (A cara é de dor porque o homem ainda lhe pisa o pé) Deixe-nos:

Mulher -- (Para o rapaz) Não, ele não irá. Ele será capaz de me fazer o pequeno favor. Ele é um homem, um grande homem, já foi general, já foi boxeur. Você, ao contrário, é um veado! (Dá uma bofetada no rapaz) Veado! Você é um veado! (Homem segura a mulher. Já não pisa o pé do rapaz. A mulher se debate)

Rapaz -- Você é uma puta! Gente como você é que inverte, perverte e subverte as famílias. Você é uma puta!

Mulher -- Exatamente! Eu sou a puta que acariciou seu irmão, a puta que seu irmão montou no concurso de danças, a puta com quem seu irmão prometeu morrer lado-a-lado, liricamente, num lago; sou afinal a puta que ouviu de seu irmão queixas contra você e contra seu pai organizadíssimo; sou afinal, a puta que está de posse do revólver de sua família. Tudo isso torna esta puta mais forte do que você e mais fraca do que ele (olha o homem), ele, poderoso, másculo, imbatível, ele que já foi  general e  já foi  boxeur...

Rapaz -- (sarcástico, encolhendo os pés) -- E já foi uma barata.

Mulher -- O senhor se deu conta do que este veado fez? Ele lembrou o que não deve ser lembrado. Ele é um sórdido veado!

Homem -- Ele tem razão -- e você sabe disso. Pois que se eu já fui general e boxeur, fui também, até ontem, uma barata. Eu não escondo esse fato. Aliás, para mim, nas circunstâncias em que me encontro, investido da condição de Grande Contestador, o fato de eu ter sido uma barata ganha um significado especial.

Mulher -- Acho que, primeiro, o senhor deve decidir a nossa pendência. Gostarei imensamente de ouvi-lo, mas  é necessário que o senhor ponha para fora este veado.  Um veado não é audiência digna de um Grande Contestador.

Homem -- Sabem o que me distinguia de vocês?

Rapaz -- Senhor, por favor, é tarde.

Homem -- É que, mesmo transformado em barata, eu não perdi minha condição humana. Minha consciência, dotada de todas as aquisições anteriores, permaneceu intacta. Vocês dois, ao contrário, são farrapos humanos, são molambos. Contra vocês e para esmagá-los marcham os Exércitos daqueles que sangram, cantam, choram, riem e de algum modo estou entre eles.

Rapaz -- É tarde, senhor. Faça com que ela me devolva o revólver. É tudo o que peço.

Mulher afasta-se e começa a cantar “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de meu amor”. Repete enquanto o homem fala. Ela já ouviu a história do homem. Está enfarada.

  Homem -- Eu quis voar para que meu pai e minha mãe não me vissem transformado numa barata.

Rapaz -- Senhor...

Homem -- (Agarra o rapaz, tapa-lhe a boca) --... e eu não consegui voar. Tudo o que consegui foi um certo ruído quando caí da cama e o ruído atraiu o meu pai e meu pai veio ao meu quarto e me viu transformado numa repugnante barata e não se solidarizou com minha desgraça, mas gritou, acovardou-se, (empurra o rapaz, anda) lamentou ter perdido o filho que trabalhava e porque trabalhava fornecia a carne, o pão, a farinha daquela casa. Fez pior, aquele meu pai: quis me matar. Para que ninguém  soubesse que do ventre de minha mãe saíra alguém que se transformara numa barata, perseguiu-me, ele, meu pai, perseguiu-me com suas botas negras e com a vassoura de piaçava, para me matar, queria me matar. Eu escapei. Penetrando no esgoto do quarto sanitário, eu escapei. E ali, no esgoto, eu os acusei, a meu pai e a minha mãe, eu os acusei. Não importa que eles não me tenham ouvido a acusá-los. Importantíssimo, para mim, é que, no silêncio permitido a uma barata, eu os acusei. E de novo agora os acuso!

Mulher -- (De repente, deixando de cantar) -- Um ponto contra o Senhor, porque o Decálogo proíbe que o filho acuse o pai.

Homem -- Você é uma estúpida! Eu não estou em julgamento . Sou o Presidente do Tribunal e é óbvio que qualquer Presidente de qualquer Tribunal é inatingível, irremovível, inalcançável.

Rapaz -- Senhor, por obséquio, me atenda: faça com que ela me devolva o relógio. Meu pai está a me aguardar  para o jantar. Meu pai é extremamente rigoroso em questão de horário.

Homem -- (Para a mulher) -- Você tem o relógio dele?

Rapaz -- Eu me equivoquei.

Mulher -- Relógio?

Rapaz -- (Para o homem) Eu me equivoquei. Disse relógio quando queria dizer revólver.

Homem -- Os equívocos são desculpáveis. (Para a mulher)  Vá, fale.

Mulher -- O quê?

Homem -- Conte o último episódio.

Mulher -- Eu cantava “Pra dizer adeus” e então...

Rapaz -- Já não há necessidade de julgamento algum uma vez que tudo isto é uma farsa.

Homem -- Bom. Desde que uma das partes decide, (aponte sua,) abandonar a contenda, a parte adversa ganha a causa.(Para a mulher) O revólver lhe pertence. Use-o como lhe aprouver.

Rapaz -- Não! O revolver  pertence  à  nossa  família.

Homem -- (Segurando fortemente o rapaz) Você disse não mas eu digo sim. Sim! Sim! Eu disse sim e é sim! A menos que o julgamento prossiga o revólver pertence a esta mulher.

Rapaz -- Isto é um pesadelo, tudo isto é um pesadelo!

Homem -- É pior, é a vida. É a vida que vocês engendraram.

Mulher -- (De pé, andando) Eu estava neste jardim, sentada precisamente neste local, eu me lembrava ora o homem-árvore, ora  do menino-morto, ora das águas do lago que são azuis. (Para o rapaz) Quando seu irmão chegou eu cantava...

Rapaz -- Diga a verdade: você o chamou.

Mulher -- Já não me lembro se o chamei ou se não   o chamei  (Para o homem) Esse detalhe é importante?

Homem -- Não, é irrelevante.

Mulher -- Eu cantava “Pra dizer adeus...” Cantava baixinho:

“Nem  que  seja  só

Pra dizer adeus”, era isto que eu cantava.

“Tão  sozinha  amor,

Pra dizer adeus...”, eu cantava, era isto que eu cantava, e foram estas palavras, estas palavras que agora estão na música, que eu disse ao médico quando lhe pedi o corpo  do  meu  menino-morto, e o médico me respondeu que não, era contra o regulamento do Hospital, aquele não era um Hospital particular e sim era um Hospital para indigentes, e disse mais que eu devia me comportar como um indigente se comporta. Pois eu não sabia, eu ignorava as linhas do comportamento instituído para  os  indigentes?

Então eu cantei:

“Nem que seja só,

Pra dizer adeus...”

Não, minto, e eu não devo mais mentir, já não há necessidade de mentiras, eu não cantei, naquele tempo não existia ainda esta canção, não, eu não cantei, eu disse “oh! doutor -- eu disse -- oh! doutor, nem que seja só pra dizer adeus”, e ele era um homem todo vestido de branco e me repetiu que não, nem para dizer adeus, o homem todo de branco me disse que havia o Regulamento a ser obedecido e havia ainda a minha condição de indigente e que eu devia me reduzir aos limites concedidos à tal condição, “tanto mais -- ele disse   -- que  você  é  uma  jovem”,

“ é uma vergonha -- ele disse -- é mesmo vergonhoso que você, uma jovem de 20 anos, tenha estado grávida, tenha parido um menino-morto, já não seja virgem”, e me gritou, ele, o médico, me gritou: “Não! O Regulamento deve ser obedecido, deve ser fielmente obedecido, os Regulamentos existem precisamente para que nós os obedeçamos,e então aquele homem todo vestido de branco deu-me as costas, e de tudo isto eu me recordava (para o rapaz) quando seu irmão apareceu. Eu cantava:

“Nem que seja só,

Prá dizer adeus”,

cantava, e seu irmão parou para ouvir-me e me disse: -- Você interpreta com muito sentimento, moça, me chamou de moça, me elogiou e então eu fiquei menos triste, há anos que não conseguia ficar menos triste, então eu o convidei ... sim! agora me lembro, eu o convidei para sentar-se ao meu lado e ele foi muito gentil e se sentou ao meu lado e muito conversamos (para o homem) porque ele era um rapaz muito gentil, era um rapaz muito delicado..

Rapaz -- É gentil, é delicado, é, é, não diga era, ele está vivo. Graças a Deus que ele está vivo. (Para o homem) Senhor, por obséquio, ouça-me: meu irmão é um rapaz dotado de uma sensibilidade especial. Eu diria que ele traz consigo todas as dores do mundo -- e nenhuma esperança. Ele é músico. É pianista. Toca violino. Muitos de os nossos vizinhos permanecem acordados noite-e-madrugada quando ele toca violino. Dir-se-ia que os acordes do seu violino envolvem o mundo inteiro, todo o mundo. É claro que meu pai não tem culpa quando ordena que ele páre de tocar violino. As coisas devem ser explicadas: meu pai é contabilista. Meu pai responde pelos livros contábeis de importantes empresas e necessita de algumas horas de sono. É por isso que meu pai manda que ele páre com o violino, não toque o violino. Porque, afinal, beleza não põe mesa, e todos  nós necessitamos de comer. Provavelmente meu pai permitiria que ele tocasse violino toda à noite, toda a madrugada, se já tivesse um bom pé de meia, mas a verdade é que nós não somos ricos. Somente as pessoas ricas podem se dar ao luxo de perder noite e madrugada. Nós não somos ricos. Isto é o que meu irmão nunca entendeu: nós não somos  ricos...

Mulher -- Ele está morto.

Rapaz -- Não.

Mulher -- Tanto quanto eu estou morta, ele está morto.

Rapaz -- Você é mesmo um louco. Eu o deixei em casa, ao lado de meu pai. Ele está vivo, graças a Deus.

Mulher -- (Para o homem) -- O senhor entendeu o que eu quis dizer quando disse que o rapaz está morto?

Homem -- Sim, ele está morto, tanto quanto você está morta. Nele e em você a doença do desespero penetrou fundo, apodreceu cada pedaço de seus corpos (Mulher assente, os gestos são de alegria, ela é entendida, aquele homem a entende) e por isso a morte física é apenas uma ausência circunstancial. (Para a mulher) -- Certo?

Mulher -- Certo!

Rapaz -- Vocês estão mancomunados contra minha família.

Homem -- (Para o rapaz)  Você, por exemplo, está morto e não sabe. Seu irmão está morto. Seu pai está morto. Toda  a  sua  família  está  morta.

Rapaz -- Não. Queremos tranqüilidade -- só isto. Queremos tranqüilidade, paz  de espírito, e  isto não é morte.

Homem -- Ela tem razão: vocês estão mortos. O que distingue seu irmão desta mulher é que ela já não tem quem interfira nos seus propósitos relacionados com o desaparecimento total. Seu irmão, ao contrário, tem você e seu pai (Para a mulher) É também certo o que eu digo?

Mulher -- (Contentíssima) Certo! Absolutamente certo!

Homem -- Marco um ponto a seu favor, porque você tem extrema facilidade de comunicação. 9 a 2 a seu favor. Aliás, pensando bem, você merece mais um ponto porque, em sua história, há uma acusação implícita ao Regulamento: 10 a 2. Prossiga.

Mulher -- Então ele se sentou ao meu lado, pediu que eu cantasse mais e cantamos em dueto:

“Tão sozinha, amor,

Nem que seja só,

Prá dizer adeus...” cantamos. De repente ele ficou triste.

Rapaz -- Ele estava bêbado! Conte isto, conte. Diga que ele estava bêbado!

Mulher -- E então eu disse a ele que gostaria de morrer!

Rapaz -- (Irritado) Ele estava bêbado!

Homem -- Isto é irrelevante.

Rapaz -- É essencial. Todo bêbado é irresponsável.

Homem -- É irrelevante.

Mulher -- (Como a suplicar) Por favor...

Homem -- Condescendendo à súplica que há no seu tom de voz permitirei que prossiga. Mas saliento que as acusações implícitas valem apenas ½ ponto.

Mulher -- Por favor...

Homem -- Adiante

Mulher -- Não me recordo se ele estava bêbado. Talvez estivesse. Uma coisa é certa: ele estava tão vazio de vida quanto eu estava vazia,   tão cansado de tudo quanto eu estava cansada, tanto quanto eu, ele queria morrer. faltava-lhe quem o convencesse que o nada é somente o nada, que a morte é apenas a morte, que a ausência final é unicamente  a ausência final. Ele perdeu o medo e concordou: nós nos jogaríamos no lago, nós nos amarraríamos e juntos cairíamos no lago. Para mim toda dificuldade consistia em quem daria o impulso. Ele se comprometeu  a dar o impulso...

Rapaz -- Isto exige uma explicação.

Homem -- Não interrompa a narrativa.

Mulher -- (Para o homem) -- Permita que ele me interrompa. Eu permito. (Para o rapaz) Sim, explique. Eu menti?

Rapaz -- Ele pensou, de fato, em matar-se. Anteontem ele se irritou porque meu pai, sem antes consultá-lo, empregou-o como vendedor de uma grande casa editora portuguesa na verdade um ótimo emprego. É necessário o estabelecer que meu pai agiu com a melhor das intenções.

Mulher -- Você não o entendeu e não o entende. Você não o entenderá nunca. É contristador verificar que um irmão não consegue compreender o outro irmão, sequer possa se aperceber que o irmão está irremediavelmente morto. Num tempo como este todos os que não lutam estão mortos. Todos nós somos habitantes do maior de todos os sepulcros caiados. Estamos mortos e estamos podres, Estamos podres e estamos mortos.

Homem -- Sensacional! Por sua extraordinária capacidade de comunicação marco mais um ponto a seu favor: 11 a 3.

Mulher -- (Para o rapaz) -- Eu tenho piedade de você: é duro ter um irmão e ser estranho a este irmão.

Homem -- Um ponto contra você: 10 a 3.

Mulher -- (Sem dar importância ao homem, acariciando o rapaz) -- Acredite: eu lamento profundamente por você e seu pai. (Rapaz a afasta)

Rapaz -- (Falando alto) Me largue! Não me pegue. Você, sim, é que está morta. Você é fria, gélida, você está morta. Seu hálito é frio e fede. Você está podre por dentro.

Homem -- Um ponto a seu favor, rapaz: 10 a 4. E um ponto contra ela, por insistência no sentimento piedoso:  9 a 4.

Rapaz -- (Irritado) -- Por que o senhor insiste nessa estupidez de marcar pontos? Isto é ridículo!

Mulher fala sem que ninguém a ouça. Parece ter sido transportada a outro tempo.

Homem -- (Para o rapaz) É do meu regulamento. Nada funciona sem que haja um Regulamento.

Mulher -- (Colocando-se entre os dois)... e então ele me disse: “comprarei uma corda, nós nos amarremos na corda”, e ele saiu e me deixou neste jardim e voltou com a corda.

Rapaz -- Eu sei dos fatos. Me interessa sua interpretação dos  fatos.

Mulher -- Mostrou-me a corda e o revólver e então eu disse que o revólver não serviria mais para nada, uma vez que nós nos amarraríamos e que juntos cairíamos no lago, de tal modo cairíamos que ninguém poderia, ulteriormente, identificar a responsabilidade do impulso em direção às águas. Isso, para mim, devido à crença religiosa da qual não abro mão, era muito importante. Se, perante vocês, confesso todas as minhas culpas, sei que Deus dará o Seu testemunho da minha  inocência.

Rapaz -- Você crê em Deus: Diga a verdade: você crê em Deus?

Homem -- Isto é irrelevante.

Rapaz -- Não, é essencial. Esta mulher confessa que induziu meu irmão a tornar-se primeiro um assassino, depois  um  suicida.

Homem -- Você é mesmo um advogadozinho de merda. Você se apega  a  detalhes  idiotas.

Mulher -- O que é que você quer? Quer que eu muito importante. Necessito redescobrir meu irmão. Neces-sito salvar meu irmão. (Para a mulher)  Ouça:

“Uma cortina de veludo,

Esconde a porta oval, Por onde...”

Mulher -- Não.

Homem -- Isto está ficando maçantíssimo. Vocês são dois marionetes nas mãos de VABUR. Se antes Ele os divertia com pão-e-circo, agora tapa seus olhos com futebol e canções.

Rapaz -- (Sem dar atenção ao homem) -- Ouça:

“Eu sonhei que tu estavas tão linda,

Numa festa de raro esplendor...”

Mulher -- Não.

Rapaz -- Ouça:

“Oh! lua branca, de fulgores, e de encantos,

Se é verdade que ao amor tu dás abrigo...”

Mulher -- Esta! Sim foi esta valsa. Com toda a certeza (Rapaz faz gesto de quem se considera vencido)

Homem -- Um ponto negativo para cada: 8 a 3. O tribunal não concorda com esta mútua exibição de pieguices (Para a mulher) Prossiga sem choradeiras e seja rápida. Eu necessito urgentemente de  um jardim onde hajam eucaliptos  a perfumarem o ar. O ar de vocês é fétido, é um ar de esgoto. Bem. Retomando o caso: aí vocês ouviram a música e foram para o lago e morreram de uma vez. Morreram e ressuscitaram e você quer morrer de novo e o rapaz está com medo de repetir a experiência. É isto? Pronto, agora a história dele.

Mulher -- Não, nós não morremos. O rapaz sugeriu que nós nos inscrevêssemos no concurso.

Rapaz -- Isto é mentira: ele não sabe dançar. A nossa religião nos proíbe a dança.

Mulher -- É verdade!

Rapaz -- Além de a dança ser proibida todos nós,  lá em casa, consideramos a dança algo grotesco. Sustento que  é  uma  mentira.

Homem -- Tudo isto é inverificável. Tudo isto é uma grossa besteira (Para a mulher) Adiante, eu tenho pressa.

Mulher -- O que eu disse é verdade. Nós dançamos. O concurso era de resistência física, ganharia o primeiro prêmio o casal que permanecesse mais horas dançando   e nós nos inscrevemos e dançamos toda uma noite, toda uma manhã, mas de tarde os expectadores eram poucos, diminuía o número de pagantes, e o organizador  do concurso resolveu animá-lo. Por isso ele decidiu transformar as mulheres em éguas. E eu me transformei égua. Depois os homens foram transformados em cavalos.. E seu irmão foi transformado num cavalo. Durante muito tempo seu irmão me montou e eu montei seu irmão, ele era o cavalo, eu era a amazona, cavalguei-o -- upa! upa! (gestos) e quase ganhamos uma corrida. Depois ele trepou em mim, batia-me como se estivesse  a  esquipar, e gritava: “vamos, eguinha boa!”, e ele estava alegre, como se, de repente, tivesse descoberto um brinquedo novo. O brinquedo de bater numa égua, fazê-la correr. E me perguntou: “você consente que eu não morra mais?” Eu mostrei todo o meu desalento, não porque ele desejasse permanecer vivo, mas porque eu ia perder a oportunidade  de afundar-me no lago sem que de minha parte houvesse a responsabilidade do impulso. Então ele prometeu que iria em casa, tranqüilizaria o pai, e retornaria para me matar, fazer aquele pequeno favor que eu lhe pedira. Mas, na verdade, não veio. Prometeu, mas não veio.

Homem -- Outro ponto para ocê. Porque acusa o irmão dele de ser um covarde. 9 a 3 é o escore. (Para o rapaz) Agora é   a  sua  vez. Conte  sua  história.

Rapaz -- Eu não tenho história para contar. Reivindico um direito líquido e certo: quero o revólver de propriedade de minha  família.

Homem -- Não posso incriminá-la apenas por isso. Até porque a propriedade deve estar condicionada ao bem-estar social.

Rapaz -- De um ponto de vista social minha família é mais importante do que esta mulher. Ela não é nada. Ela não interfere no processo de construção do nosso Produto Nacional Bruto (Para a mulher)  Você já  pariu?

Mulher -- Um menino-morto.

Rapaz -- Eis aí: ela é uma inútil.

Homem -- No caso, a responsabilidade não é dela e sim do homem-árvore. (Para a mulher) Você fez outra tentativa de engravidar?

Mulher -- Não.

Homem -- (Para rapaz) Ela é inocente no episódio do menino-morto. Concordo em que você deve acusá-la mas a partir de fatos reais. Não me venha com seus artifíciozinhos.

Rapaz -- (Irritado, gritando) Quero apenas o revólver! Apenas isto: quero o revólver!

Homem -- (Segura o rapaz, domina-o) Modere seu tom de voz. Isto aqui é um  Tribunal. Há certas regras das quais ninguém pode abrir mão e uma delas é esta: devemos respeito aos Tribunais.

Rapaz -- O senhor é paradoxal!

Homem -- O que?

Rapaz -- (Desafiador) Eu disse, e repito, que o senhor é paradoxal. O senhor exigiu que eu e esta mulher aí acusássemos tudo e todos e agora é o senhor mesmo que exige respeitemos os Tribunais e as Regras dos Tribunais.

Homem -- (Surpreso) Eu  exigi  isto?

Rapaz -- Exigiu.

Homem -- (Para a mulher)  O que ele diz é verdade?

Mulher -- Sim. O senhor exigiu respeito aos Tribunais.

Homem -- Retiro a exigência e confesso que me corrompi. O poder corresponde a uma máquina de corrupção e eu me corrompi. Mesmo o poder mais puro termina por   se corromper. O único poder que não se corrompe é aquele que realiza conscientemente sua autodestruição, mas isto somente se  dará no tempo das auroras puras. Um ponto contra mim mesmo. Um ponto para você, rapaz, um ponto a seu favor: 9 a 4. Você exerceu o direito da vigilância permanente. Surpreendeu-me no pior dos erros. Devo-lhe agrade-cimentos especiais. Agora, prossiga  na  sua  história.

Rapaz -- Eu não tenho história a narrar. Tudo o que desejo é o revólver.

Homem -- Resumindo: ela se exibiu nua para você, ela contou tudo e você se enfarpela como um lorde misterioso. Um ponto contra você: 10 a 4. (Exigindo)  Conte a história.

Rapaz -- Eu não tenho história.

Homem -- (Gritando) -- Conte!

Rapaz -- Não. Eu tenho pudor. Não exporei minha fa-mília à curiosidade pública. Os erros de meu irmão somente à mim e ao meu pai dizem res-peito.

Mulher -- E  sua  mãe?

Rapaz -- (Apreensivo) Por que a senhora se refere à minha  mãe?

Mulher -- É uma adúltera!

Rapaz treme. Morde os lábios.Percebe-se que quer reagir mas não pode. Olha com ódio a mulher e o homem. Sua. Mulher -- Seu irmão me contou. Ela fugiu. Deixou-os e eu sei tudo. Você pensa que seu irmão não vai vê-la? Vai, bobalhão, vai!

Homem -- Isto é irrelevante. É um drama familiar. Não conta pontos. Vá, rapaz, conte sua história. A este Tribunal importam as comoções sociais dos problemas.  Vá, fale, diga alguma coisa.

Mulher -- Mãe adúltera, filho  veado -- é  sempre  assim.

Rapaz -- (Gritando) O revólver! O revólver! Tudo o que eu peço é o revólver.

Homem -- Não grite!

Rapaz -- Eu pago pelo revólver! Pago! Pago!

Homem -- (Enquanto o rapaz grita) Silêncio! (Tapa a boca do rapaz). Silêncio! (Rapaz se debate, é inútil, já não oferece resistência. Homem certifica-se que o rapaz não gritará. Ele está vencido) Este Tribunal decide o seguinte: a mulher ficará  com o revólver para usá-lo onde, quando e como quiser, mas como os revólveres não nascem em árvores, à família deste rapaz será paga uma indenização a ser fixada mediante judiciosa coleta de preços  na  praça.

Mulher -- Eu não tenho um tostão.

Homem -- Nada?

Mulher -- Nem um tostão.

Rapaz -- Não se trata de uma  questão pecuniária.

Homem -- É um re-0vólver provido de alto valor estimativo? Balas de ouro para ele foram feitas afim de que, poeticamente, seu pai possa matar  sua  mãe?

Rapaz -- (Controlando-se) Compreenda, cavalheiro, pelo amor de Deus, imploro, compreenda: o revólver tem um número, esse número corresponde a uma licença fornecida pela Polícia, esta mulher aí terminará se matando com o revólver e então a Polícia... Será que o  senhor  não  entende?

Homem -- Não.

Rapaz -- Oh! Meu Deus!

Homem -- Você já disse isto várias vezes e já perdeu a hora de jantar.

Mulher -- Marque um ponto contra ele: invocou Seu Santo Nome em vão e isto é proibido pelo Decálogo. 11 a 4 a meu favor.

Homem -- Penso que há uma fórmula...

Mulher -- (Rindo) Mar-que um ponto contra este veado!

Homem -- Cale-se! Meu dever  é o de fazer justiça e não  o de escarnecer dos adversários.

Mulher -- (Exageradamente na submissão) Se o senhor manda eu calo. Calo-me perante o Grande Juiz, o Grande Contestador, a grande luz  das  auroras  futuras.

Homem -- Você enche! Eu não tolero elogios cara-a-cara. Pense os elogios mas não diga. (Para o rapaz) Há uma fórmula. Façamos o seguinte: a mulher ficará com o revolver, e, concomitantemente, (para o rapaz) você ganhará uma segurança de impunidade em relação à sua família.

Rapaz -- Como? O senhor a matará e me entregará o revólver?

Homem -- Não sei ainda se devo matá-la ou não. É possível que eu o faça, ainda não estou convencido.

Mulher -- Ser morta pelo senhor seria, para mim, uma honra insigne. Afinal não é todo o dia que uma mulher pobre e insignificante como  eu, sem utilidade social, é morta por alguém que já foi barata, boxeur, general, e é, hoje, O Grande Contestador. Se não fosse pedir demais, pediria que meu epitáfio fosse assim: “ aqui jaz a delicada Senhorita piedosamente morta pelo Grande Contestador”. Seria uma honra, seria um atestado de que não pequei.

Homem -- (Para o rapaz) Certo é limar o número de série do revólver. Você irá a uma loja de ferragens e comprará...Um momento! (Para a mulher) Dê-me  o  revólver.

Mulher -- Para que?

Homem -- Dê-me o revólver.

Rapaz -- (Animado) -- Dê-lhe  o  revólver.

Mulher -- Não!

Homem -- (Segurando fortemente a mulher. Para o rapaz) -- Pegue o revólver!

Rapaz -- Onde?

Homem -- Abra a sacola! Pegue  o  revólver!

Homem segura a mulher que se debate e luta. Rapaz pega o revólver e demonstra o propósito de correr, fugir, Homem empurra a mulher, salta sobre o rapaz, domina-o, toma-lhe o revólver. Rapaz e mulher investem contra o homem.

Mulher -- Ladrão! Ladrão!

Rapaz -- (Para a mulher) Não faça escândalo!

Homem -- (Apontando a arma para os dois) Sentem-se! (Para o rapaz) Sente-se ou atiro! (Para a mulher) Sente-se ou irei embora! (Mulher e rapaz obedecem) Vocês são dois estúpidos. É imensa a carga de desconfiança que vocês conduzem. Toda esta palhaçada  e por que? (Para a mulher) Porque você julgou que eu iria traí-la (Para o rapaz) Porque você julgou que eu lhe permitiria fugir com a arma. Na verdade, tudo o que eu queria ver era o número do revólver.  O número, apenas o número, se é possível limar o número (Esfrega o revólver na cara do rapaz), o número! Aqui, imbecil, o número! (Pausa) Você se importa que ela viva ou morra?

Rapaz -- Não. Ela é dona de sua vida e de sua morte.

Homem -- Todo o seu cuidado consiste em que o nome de sua família não seja envolvido.

Rapaz -- Exato.

Homem -- Vá comprar a lima. Não demore. Eu quero sair daqui o mais cedo. Você limará o revólver. É um revólver comum. Há milhões de revolveres  como  este.

Mulher -- O senhor me matará? O senhor assumirá a responsabilidade da iniciativa?

Homem -- Sim. Necessito sair daqui o mais cedo (Rapaz se afasta) Você está contente?

Mulher -- Estou cansada, muito cansada. O senhor perguntou o quê?

Homem -- Se você está contente...

Mulher -- (Representando) Estou contentíssima. Esta é a terceira ou quarta vez  na vida que me sinto contentíssima. Contente e honrada. A todos quantos estejam mortos  lá em cima eu direi, para que me invejem, que fui morta pelo Grande Contestador (Pausa) Não obstante esse meu contentamento, confesso que estou cansada. Muito me cansa a idéia de permanecer neste banco esperando que aquele veado vá a uma loja de ferragens, compre uma lima, traga a lima, lime o número do revólver... É tudo muito cansativo. O senhor não poderia abreviar... quero dizer:  o senhor me mataria e depois limaria o número do revólver.   A ordem dos fatores não altera  o produto, como o senhor sabe.

Homem -- No caso, altera. Eu assumi um compromisso.

Mulher -- Que nos diremos enquanto ele procura a loja de ferragens?

Homem -- Não sei.

Mulher -- Falemos sobre o modo como o senhor me matará.

Homem -- Matar para mim não é novidade. Lembre-se que eu já fui Senhor da Guerra.

Mulher -- Não me referí ao conteúdo, mas à forma.

Homem -- Sou especialista  na  matéria

Mulher -- Creio que o senhor deve agir da seguinte forma: eu me deito...

Homem -- (Irritado) -- Você fala como se fosse membro de uma dessas Comissões Técnicas. Isto me irrita.

Mulher -- Não desejei irritá-lo.

Homem -- Você me irritou. Você quis me atribuir um dever. Considero isso um abuso. Quando eu fui general eu devia fazer coisas compatíveis com minha condição de general: mandava bater, mandava matar, aprisionava, calculava destruições, morticínios. Quando eu fui boxeur eu devia espancar, eu devia me permitir espancado, devia sangrar. Quando eu fui barata meu pai deixou tudo muito claro: eu devia morrer, devia concordar em que ele me alcançasse com suas botas negras e sua vassoura de piaçava. Agora é você quem me joga na cara este verbo: dever. Eu devo. Eu devo. Zorra! Eu não lhe devo nada! Se à Humanidade eu devo tudo, a você e a cada um de vocês, isoladamente, eu não devo nada. Minha dívida é com o futuro, o tempo das auroras puras.

Mulher -- Vá, fale mais. Onde mais o senhor lutou? Onde mais fez a guerra? Onde mais foi barata? Vá, fale, não deixe de falar, fale.

Homem -- Fui barata nos esgotos desta cidade, fui general na Guerra, fui general na  Guerra do Chaco, fui boxeur em muitas partes do mundo, mas sobretudo fui boxeur em Quito, aquela noite memorável.

Mulher -- Fale, fale, não deixe de falar, fale.

Silêncio que é embaraçoso para ambos

Mulher -- Não permita este  silêncio. Mate este silêncio. Fale, pelo amor de Deus, fale.

Homem -- Talvez seja útil...

Mulher -- Eu sei que é útil, vá, fale!

Homem -- Lutávamos com violência. O companheiro adversário  me esmurrava cada centímetro quadrado da cara, via meu sangue saindo, via que eu estava na derrota e sorria a cada novo soco que me dava. Sorria de gozo. Era a alegria dele. Não me importei com o riso daquele companheiro adversário, até porque, em mim, a dor física é uma ausência. O meu ódio foi para a gente que o espiava a me bater,  a me sangrar, aquela gente que pedia mais. Descobri, ali mesmo, que aquele meu ódio era extremamente perigoso, porque eu estava a odiar meus iguais. Eles não eram apenas o público pagante, mas compunham a multidão sobre a qual eu devia cuspir gosma e sangue, de modo a torná-la minha audiência, eu a dizer-lhe as verdades que caminham com qualquer Grande Contestador. Eu descobri, em Quito, que aquele ódio inconseqüente poderia grudar-se em mim para sempre, poderia tornar-me a minha alegria e eu tive medo de que assim acontecesse. E venci a tentação do ódio inconseqüente. Então eu cuspi gosma e sangue para cima, desejando que todos entendessem o simbolismo daquele gesto. Você entendeu?

Mulher -- Creio que  sim, mas deixe-me deitar. Estou cansada. Continue falando. Eu me deito mas o senhor continuará falando. Eu estou cansada e aquele veado demora e há este silêncio quando o senhor  deixa  de  falar.

Homem -- Deite-se e durma. Descanse.

Mulher -- Ele demora.

Homem -- Ele virá.

Mulher -- Fale, continue falando, vá, fale...

Homem -- Em Roma, certa noite, meu adversário era um tchecoslovaco e eu o olhei com amor, tentando compreendê-lo ... (voz do homem sumindo. A mulher se deita. As luzes se apagam. Depois, silêncio. Rompendo o silêncio o ruído característico da lima sobre metal)

Voz do Homem -- Era uma fazenda imensa. Meu avô me deu um cavalo. Chamava-se Roxinho. Como é mesmo seu nome?

Voz de mulher -- Senhorita.

Voz de homem -- Feche os olhos, não me olhe. Não se mova. Agora! (Pausa. Ruído de um tiro). O cavalo se chamava Roxinho.

 

FIM.


Drama de Ariovaldo Matos. 


Ajude este blogger depositando qualquer valor via PIX  71983470521

     

   

 

 

       

   

 

 

     

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Carta aberta aos novos empresários brasileiro. Algoritmização

Rosa tem febre demais