O Palhaço
Trajado com enorme calça florida, que comportaria três pessoas de
peso equivalente ao dele, tendo prendido na altura da cintura um
bambolê, cosido sob o cós da calça e seguro por suspensórios verdes, que
sobrepunham camisa de seda ornada com grandes círculos coloridos;
Florentino se sentou diante do espelho.
Com o coração apertado rememorou pela zilionésima vez do dia em
que se despediu de casa. Deixara para trás a mulher que amava, e nela, os
olhos lacrimejantes. Eram especiais aqueles olhos transparentes, vítreos,
com apenas leves intenções de azul que lhe expunham, sempre, os
sentimentos mais profundos.
Enquanto empastava o rosto com pigmentos coloridos, recordou-se,
igualmente, do açude seco, do gado morto, da fome que passara e da dor
que sentira ao deixar o sertão baiano motivado pela seca. Partira junto aos
mambembes para São Paulo carregado por sonhos de melhores dias.
Esquecera-se apenas da promessa feita à mulher de olhos vítreos que
retornaria para buscá-la.
Eram sempre as mesmas lembranças torturantes que martirizavam
seu espírito, e nem mesmo o peso dos anos embaçou da memória o gosto
do pó, nauseante, na boca árida.
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Aplausos, longínquos, vindos da tenda principal e o tique-taque do relógio sobre a penteadeira apressaram-no na composição da caricata
figura. — O retoque dado a lápis na maquiagem enegrecia os contornos
dos desenhos pigmentados. — Calçou-se rápido com os descomunais
sapatos pretos. Colocou o nariz, vermelho, preso por um fino elástico,
transparente, que findaria a formação da figura dramática, não fosse o
vazio da calça, onde andando, preencheria com bexigas coloridas às quais
enchera pacientemente com gás, confetes e purpurina na noite anterior.
— Concluído por definitivo o personagem, o Palhaço Zequinha rompe o
picadeiro dando saltos e fazendo piruetas.
As piadas encenadas, as gargalhadas, as bexigas cheias de confetes,
gás e purpurina que eram estouradas e distribuídas no auditório, ou ainda,
os refletores e os trapezistas que flutuavam sobre sua cabeça não
impediram o aperto no peito ao ver na primeira fila os mesmo olhos
límpidos que a pouco recordara. Tais lembranças retornaram dilacerantes.
O Palhaço reparou, também, numa criança-adulta ao lado da mulher de
olhos vítreos, como se ela, a criança-adulta, renovasse-lhe as feições...
Seria?
O palhaço voou em direção ao casal. Os olhares mais uma vez se
cruzaram. Contudo, desta vez, a densa maquiagem não o protegeria da
pergunta explodida da senhora de olhos cintilantes, quais vitrais, com leve
caráter azul:
— FLORENTINO?!
Paralisado ficou o palhaço. Braços abertos estendidos no ar. A
criança-adulta não esperou resposta, levantou-se e pulou a pequena balaustrada. Os seguranças tentaram contê-lo. Não conseguiram... Um
abraço forte... Um grito:
— PAI?!
Aplausos! Muitos aplausos às custas de uma vida em meio a
lágrimas...
Texto extraído do Livro em E-Book, Crônicas e contos leves" de Ricardo Matos.
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