Quando a ficha caiu


 


            Vivia como em sua maioria vivem as pessoas normais, buscando um
futuro que nunca chega e nunca haverá de chegar e preso a um passado
que a memória falseava. Tivera uma infância fácil, visto de suas boas
recordações imaginadas. Quando jovem e belo, fazia como todos os
jovens, que por serem jovens e belos, sem se saberem belos, por serem
jovens, buscam em si defeitos que não possuem.
Ele, apenas, continuou jovem ano a ano fazendo o que esperavam
por ele ser feito. Enamorou quem o quis, não quem ele queria — temia as
paixões, — e casou-se e procriou como esperado. Trabalhou muito e
educou os filhos, como se educa os filhos de quem vive na busca por ser
um vencedor. Amava os filhos e a eles dava sempre o do bom e do
melhor. Só não dispunha de tempo para conhecê-los e os educava como
fora educado, exigindo respeito e obediência a ele e as regras sociais de
sua classe. Viveu como vivem quase todos os que a sorte favoreceu.
Apenas não se deu conta que o tempo não para em sua perversa
constância.
Costumava carregar sempre um sorriso político nos lábios para
evitar confrontos, mantinha o pensamento sempre no porvir,
sequenciado, de quem se espera eternamente pela felicidade. E seguia-se
a vida. Não tinha mais nenhuma atração pela esposa, pensava ser comum
a todos os casais. Aos poucos, seus raros amigos se perdiam nas tramas da história ou faleciam. Ele temia conhecer novas pessoas, outras formas
de entender a existência. Não gostava de mudanças. E dizia a si mesmo
“faz parte é da vida” a cada perda, e seguia na sua vidinha de faz-de
conta-que-sou-feliz. Viu os filhos crescerem e partirem. Consolava a
companheira com sonhos a serem realizados a dois assim que
concretizasse mais um negócio. Até que caiu a ficha e descobriu, pouco
antes da morte, que desperdiçara seus momentos a esperar uma
felicidade sempre no porvir. Mas portou-se com dignidade. Olhou a
mulher chorosa, entregou-lhe o mesmo sorriso mentiroso e suave de
sempre, e disse-lhe a ultima frase caridosa.
— Amor, você me fez feliz.

Texto de Ricardo Matos do Livro em e-book "Contos e Crônicas Leves". 

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